Quase quatro anos depois de nos ter deixado permitam-me
que relembre aqui , com muitas
saudades à mistura, a minha carta de despedida ao meu querido sobrinho Victor
José.
Adeus, meu querido…
Que
posso fazer quando me apercebo que não voltarei a receber mais uma das tuas
chamadas de telemóvel em que, invariavelmente, perguntavas: “então meu
querido?”, que não seja tentar reter lágrimas de saudade?
Foi anteontem, era mais uma das
sardinhadas que organizavas em tua casa, pretexto para reunires os teus amigos,
especialmente aqueles de quem gostavas como se fossem teus irmãos.
Tínhamos começado a almoçar quando o
teu “amigo-irmão”, Rui Silvério, recebeu um toque no telemóvel que lhe enviaste
depois de te teres levantado da mesa sem nos apercebermos.
Pressentindo que se aproximava mais
um “surto” da esclerose múltipla de que sofrias, ausentaste-te para uma outra
parte da casa sem que depois conseguisses evitar um mudo pedido de SOS.
Foram minutos de pânico, desespero,
em que cada um de nós procurou agarrar a vida que se escoava de ti. Os apelos
eram dramáticos: “vá, companheiro, reage, abre os olhos, vive…” mas neste
último “surto” já não haveria retorno.
Com os teus amigos de quem tanto
gostavas à tua volta, em desespero, perfeitamente atordoados, tinhas adormecido
para sempre em paz e sem sofrimento.
Ao longo de cerca de vinte anos, até
aos quarenta e cinco, carregaste uma sentença de morte denominada esclerose
múltipla mas durante esses anos em que o “copo foi enchendo até à gota que o
fez transbordar”, na expressão do Zé Manel, médico, amigo,“irmão”, tu viveste…
caramba, se viveste, como qualquer outro mortal dificilmente conseguirá viver
em cem anos que cá esteja.
Durante anos exploraste estufas na
nossa aldeia da Concavada produzindo principalmente feijão verde e meloa com os
elogios dos técnicos da especialidade mas, lutando contra um micro clima que
era adverso, foste obrigado a desistir.
Montaste uma empresa
de serviços na área das limpezas industriais e na Central Eléctrica do Pego,
competindo com outras bem mais poderosas, foste sempre ganhando todos os
concursos periódicos para a renovação do contrato de prestação dos serviços,
pelas tuas imensas capacidades de trabalho, inteligência e qualidade das
relações humanas que desenvolvias.
Em colaboração com o
teu pai, meu único irmão, do qual, em muitos aspectos, eras uma continuação,
montaste com total sucesso uma actividade de comércio de móveis que exigia
permanentes deslocações à Holanda.
Construíste e
exploraste um empreendimento turístico em Pipa, no Brasil e mantiveste negócios
no imobiliário em João
Pessoa e Natal.
Em incursões
prolongadas a Cuba, percorrendo o seu interior, conseguiste trazer a Portugal
músicos daquele país que actuaram e ganharam dinheiro melhorando as condições
de vida na sua terra e abrindo-lhes as perspectivas do mundo deixando atrás de
ti, por essas terras e essas gentes, um rasto de humanidade.
Tudo isto fizeste com respeito pelos
outros, sem amachucar ninguém, ajudando, estendendo a mão, semeando amigos,
deixando por todo o lado por onde passaste pessoas que te adoraram.
Foi assim porque o coração que
finalmente se recusou a manter-te vivo por mais não poder, era grande,
enorme... e bom.
Na minha qualidade de homem
orgulho-me que tenhas sido meu sobrinho e se me é permitido este desabafo,
dizer que aqui lo que aconteceu
contigo só não constitui a maior injustiça deste mundo porque não há critérios
ou preocupações de justiça nestas coisas.
Às cegas, ao acaso, as escleroses
múltiplas e muitos outros males são por esse mundo distribuídos pelas pessoas
sem cuidar de nada, de forma totalmente aleatória e eu próprio me sentia
incomodado por ter a saúde que tu não tinhas, sentia-me "injustiçado"
porque tu eras melhor, mais humano e corajoso que eu e a maioria de nós.
Sei que relativamente a estas coisas
da vida e da morte pensavas como eu: desligado o interruptor da vida
regressamos ao mesmo local onde sempre estivemos até nascer. Tal como então,
nada nem ninguém jamais te incomodará mas atrevo-me a dizer, que mesmo com esclerose múltipla, pelas muitas pessoas que te amaram nesta vida, foi um feliz
acaso teres vindo a este mundo.
Adeus, meu querido.
Tio Jaqui m.
Junho de 2009
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