Episódio Nº 4
António Balduíno não
enxerga mais nada. Vinha um vento frio com a escuridão. Ele nem o sentia.
Gozava voluptuosamente os ruídos, o barulho que aumentava cada vez mais. não
perdia um só.
Distinguia as risadas, as
vozes dos bêbados, os gritos, as conversas sobre política, a voz arrastada de
cegos pedindo uma esmola por amor de Deus o barulho dos bondes carregados de
pingentes. Gozava devagarinho a vida da cidade.
Um dia teve uma emoção
enorme que o arrepiou todo. Chegou a ficar em pé, tremendo de prazer. É que
distinguiu choro, choro de mulher e vozes que consolavam.
Aqui lo
subia como um tropel por dentro dele, o arrastava numa vertigem de gozo. Choro…
Alguém, uma mulher, chorava na cidade que escurecia. António Balduíno escutou o
choro doloroso até que se extinguiu com o ruído de um bonde que passava
arranhando nos trilhos.
António Balduíno ainda
ficou com a respiração suspensa vendo se conseguia ouvir mais alguma coisa.
Porém deviam ter levado a mulher para longe da rua, pois ele não escutou mais
nada.
Nesse dia não qui s jantar e à noite não correu pelas ruas com os
companheiros. Sua tia dissera:
- Este menino viu coisa… Isto é sonso como o
não sei que diga…
Dias bons, também, aqueles
em que sentia a companhia da assistência badalando na cidade. Era sofrimento
que existia lá em baixo e António Balduíno, menino de oito anos, gozava aqueles
pedaços de sofrimento como o homem goza a mulher.
Mas as luzes que se
acendiam purificavam tudo. António Balduíno se envolvia na contemplação nas
fileiras de lâmpadas, mergulhava os olhos vivos na claridade e sentia vontade
de agradar aos outros negrinhos do Morro do capa Negro.
Se alguém se aproximasse
dele naquele instante, ele o acariciaria sem dúvida, não o receberia com os
beliscões costumeiros, não diria os palavrões que cedo aprendera.
Passaria sem dúvida a mão
sobre a carapinha do companheiro de brinquedos, recostaria o peito ao peito do
amigo. E talvez sorrisse. Mas os garotos estavam correndo pelo morro e não se
lembravam de António Balduíno.
Ele ficava vendo as luzes.
Distinguia vultos que passavam. Mulheres e homens que passeavam, talvez. Por
detrás, no morro, violas repenicavam, negros conversavam. A velha Luísa
gritava:
- Baldo, vem jantar… Menino impossível…
Sua tia Luísa fora-lhe pai
e mãe. De seu pai, António Balduíno, apenas sabia que se chamava Valentim, que
fora jagunço de António Conselheiro quando rapazola, que amava as negras que
encontrava a cada passo, que bebia muito, bebia valentemente, e morreu debaixo
de um bonde num dia de farra grossa.
Coisas que ele ouvia da
tia quando esta conversava com os vizinhos sobre o finado irmão. Ela concluía
sempre:
- Era um negro bonito de encher a boca de
água. Também brigão e cachaceiro como ele só…
António Balduino ouvia
calado e fazia do pai um herói. Com certeza seu pai vivera a vida da cidade na
hora em que as luzes se acendem. Tentava às vezes reconstituir a vida de seu
pai com os pedaços de aventuras que ouvia da velha Luísa contar.
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