Mário
Nogueira, os Professores
e os desgraçados dos Alunos
Por Miguel Sousa
Tavares
A minha entrada no ensino foi feita numa pequeníssima aldeia
rural do norte. Éramos uns 80 alunos, da 1ª à 4ª classe, todos juntos na mesma e
única sala de aula da escola - que não me lembro se tinha ou não casas-de-banho,
mas sei que não tinha qualquer espécie de aquecimento contra o frio granítico,
de Novembro a Março, que nos colava às carteiras duplas, petrificados como
estalactites. Lembro-me de que o "recreio" era apenas um pequeno espaço plano,
enlameado no Inverno, e onde jogávamos futebol com uma bola feita de meias
velhas e balizas marcadas com pedras. A escola não tinha um vigilante, um
porteiro, uma secretária administrativa. Ninguém mais do que a D. Constança, a
professora que, sozinha, desempenhava todas essas tarefas e ainda ensinava os
rios do Ultramar aos da 4ª classe, a história pátria aos da 3ª, as fracções aos
da 2ª, e as primeiras letras aos da 1ª. Ela, sozinha, constituía todo o pessoal
daquilo a que agora se chama o 1º ciclo. Se porventura, adoecesse, ou se na
aldeia houvesse, que não havia, um médico disposto a passar-lhe uma baixa
psicológica ou outra qualquer quando não lhe apetecesse ir trabalhar, as 80
crianças da aldeia em idade escolar ficariam sem escola. Mas ela não falhou um
único dia em todo o ano lectivo e eu saí de lá a saber escrever e para sempre
apaixonado pela leitura. Devo-lhe isso eternamente.
Nesse tempo, não
havia Parque Escolar, não havia pequenos-almoços na escola (que boa falta
faziam!), não havia aquecimento nas salas, não havia o recorde de Portugal e da
Europa de baixas profissionais entre os professores, não havia telemóveis nem
iPads com os alunos, não havia "Magalhães" ao serviço dos meninos, mas sim
lousas e giz, os professores não faziam greves porque estavam "desmotivados" ou
"deprimidos" e a noção de "horário zero" seria levada à conta de brincadeira.
Era assim a vida.
Não vou (notem: não vou) sustentar que assim é que
estava bem. Limito-me a dizer que tudo é relativo e que nada do que temos por
adquirido, excepto a morte, o foi sempre ou o será para sempre. E sei que na
Finlândia - o país considerado modelo no ensino básico e secundário pela OCDE -
os professores trabalham mais horas do que aqui, não faltam às aulas e ganham
proporcionalmente menos. Com resultados substancialmente melhores, do único
ponto de vista que interessa aos pais e aos contribuintes: o desempenho escolar
dos alunos.
Só uma classe que recusou, como ultraje, a possibilidade de
ser avaliada para efeitos de progressão profissional - isto é, uma classe onde
os medíocres reivindicaram o direito constitucional de ganharem o mesmo que os
competentes - é que se pode permitir a irresponsabilidade e a leviandade de
decretar uma greve aos exames nacionais. Nisso, são professores exemplares:
transmitem aos alunos o seu próprio exemplo, o exemplo de quem acha que os
exames, as avaliações, são um incómodo para a paz de um sistema assente na
desresponsabilização, na nivelação de todos por baixo, na ausência de estímulo
ao mérito e ao esforço individual.
Mas a greve dos professores vai muito
para lá deles: reflecte o estado de espírito de uma parte do país que não
entendeu ou não quer entender o que lhe aconteceu. Deixem-me, então recordar:
Portugal faliu. O Portugal das baixas psicológicas, dos direitos adquiridos para
sempre, das falcatruas fiscais, das reformas antecipadas, dos subsídios para
tudo e mais alguma coisa, dos salários iguais para os que trabalham e os que
preguiçam, faliu. Faliu: não é mais sustentável. Podemos discutir, discordar,
opormo-nos às condições do resgate que nos foi imposto e à sua gestão por parte
deste Governo: eu também o faço e veementemente. Mas não podemos, se formos
sérios, esquecer o essencial: se fomos resgatados, é porque fomos à falência; e,
se fomos à falência, é porque não produzimos riqueza que possa sustentar o modo
de vida a que nos habituámos. Se alguém conhece uma alternativa mágica, em que
se possa ter professores sem crianças, auto-estradas sem carros, reformas sem
dinheiro para as pagar, acumulando dívida a 6, 7 ou 8% de juros para a geração
seguinte pagar, que o diga. Caso contrário, tenham pudor: não se fazem greves
porque se acaba com os horários zero, porque se estabelece um horário semanal (e
ficcional) de 40 horas de trabalho ou porque o Estado não pode sustentar o mesmo
número de professores, se os portugueses não fazem filhos.
Por mais que
respeite o direito à greve, causa-me uma sensação desagradável ver dirigentes
sindicais, dos professores e não só, regozijarem-se porque ninguém foi
trabalhar. Ver um sindicalismo de bota-abaixo constante, onde qualquer greve,
qualquer manifestação, é muito mais valorizada e procurada do que qualquer
acordo e qualquer negociação - como se, por cada português com vontade de
trabalhar, houvesse outro cujo trabalho consiste em dissuadi-lo desse vício.
Assim como me causa impressão, no estado em que o país está, saber que quase
200.000 trabalhadores pediram a reforma antecipada em 2012, mesmo perdendo
dinheiro, e apesar de se queixarem da crise e dos constantes cortes nas pensões.
Porque a mensagem deles é clara: "Eu, para já, mesmo perdendo dinheiro, safo-me.
Os otários que continuarem a trabalhar e que se vierem a reformar mais tarde, em
piores condições, é que lixam!" É o retrato de um país que parece ter perdido
qualquer noção de destino colectivo: há um milhão de portugueses sem trabalho e
grande parte dos que o têm, aparentemente, só desejam deixar de trabalhar. Será
assim que nos livraremos da troika?
As coisas chegaram a um ponto de
anormalidade tal, que, quando o ministro da Educação, no exercício do seu mais
elementar dever - que é o de defender os direitos dos alunos contra a greve dos
professores - convoca todos eles para vigiar os exames, aqui d'El Rey na
imprensa bem-pensante que se trata de sabotar o legítimo direito à greve. Ou
seja: que haja professores (que os há, felizmente!) dispostos a permitir que os
alunos tenham exames é uma violação ilegítima do direito dos outros a que eles
não tenham exames. Di-lo o dr. Garcia Pereira, o advogado dos trabalhadores e do
dr. Jardim, infalível defensor da classe operária, e o mesmo que, no final do
meu tempo de estudante, na Faculdade de Direito de Lisboa, invocando os
ensinamentos do grande camarada Mao, decretava greve aos "exames burgueses" -
que o fizeram advogado.
Não contesto que as greves, por natureza, causem
incómodos a outrem - ou não fariam sentido. Mas há limites para tudo. Limites de
brio profissional: um cirurgião não resolve entrar em grave quando recebe um
doente já anestesiado pronto para a operação; um controlador aéreo não entra em
greve quando tem um avião a fazer-se à pista; um bombeiro não entra em greve
quando há um incêndio para apagar. Eu sei que isto que agora escrevo vai
circular nos blogues dos professores, vai ser adulterado, deturpado, montado
conforme dê mais jeito: já o fizeram no passado, inventando coisas que eu nunca
disse, e só custa da primeira vez. Paciência, é isto que eu penso: esta greve
dos professores aos exames, por muitas razões que possam ter, é
inadmissível.
Texto publicado na edição do Expresso de 15 de Junho de
2013
OBS - Em resumo, MST, sabe que não é justo estabelecer um paralelismo entre a "sua" escola primária ou a minha escola primária, por maioria de razão quanto mais recuarmos pior, e as condições de ensino de hoje.
A aposta na educação não foi uma opção do regime de Salazar, e isso todos nós sabemos e MST igualmente.
Quando embarquei, em fins de 1962 para a guerra em Angola, tinha no meu pelotão uma maioria de rapazes que pouco mais sabiam que escrever o seu nome. Com a 3ª Classe já possuíam o 1º Grau da Instrução Primária e com a 4ª, que eram raros, o Exército aproveitava-os para os graduar em cabos. Como atenuante a circunstância de serem quase todos oriundos de aldeias do interior de Portugal.
O Ensino, tal como a Saúde, foi uma das grandes apostas da democracia do pós 25 de Abril, com prejuízo do ensino profissional pois havia "fome" de doutores. Foi uma explosão de escolas, de professores, de faculdades, de ensino generalizado que, fatalmente, não podia ser de boa qualidade.
Os professores aumentaram, constituíram-se numa força reivindicativa de grande poder nas mãos da CGTP/PCP e os governos foram satisfazendo essas exigências por motivos políticos até chegarmos a um Parque Escolar que, em alguns casos, parece das arábias e o 12º Ano, antigo Curso Complementar dos Liceus, tornado legalmente obrigatório a toda a população.
Em termos de política de governo, descontados alguns exageros, eu também direi que investir na juventude é investir no futuro mas, num país com gravíssimas limitações financeiras, com uma dívida astronómica, juros anuais de mais de 7000 milhões por ano, sem acesso ao crédito que durante anos alimentou grande parte da Despesa Pública, com uma população de crianças que bateu o record negativo de menos de 200.000 nascimentos no ano passado, como é possível manter este número de professores e estes montantes de despesa com a Educação?
É aqui que batem as greves, nesta situação terrível de restrições financeiras de um país que faliu e que, por isso, "impôe" desemprego de funcionários públicos, entre os quais professores, já que outros, os das empresas privadas, aparecem apenas nas Estatísticas do IEFP na categoria de Desempregados sem terem a voz do Mário Nogueira a pugnar por eles.
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