Episódio Nº 83
Esse barulho que a água
faz agora é o amor do mar e do rio. E o barulho que vem da mata, lá atrás, deve
ser de alguma amante de padre, que morreu e virou mula sem cabeça e anda
vagabunda por esses matos escuros que cobriam os túmulos dos negros
escravizados.
O saveiro corre suavemente
na água mansa do rio. No leme mestre Manuel fuma cachimbo. Aponta as coroas
negras de pedra. A estrada não tem mistérios para ele.
António Balduíno acabou de
cantar o seu samba que o Gordo já sabe de cor. Ele acha que é o samba mais
bonito que António Balduíno já fez, pois fala em mulher, em malandragem, em estrelas. Pede :
- Não venda mais samba, Baldo.
O negro ri. O saveiro vai
pelo rio, correndo:
- Ninguém se pega com ele – diz mestre Manuel
acariciando o barco como se acariciasse uma mulher.
Vem um vento que empina as
velas e refresca os homens. Do porão vem um cheiro de abacaxis maduros.
Mestre Manuel possui
saveiro há muitos anos. António Balduíno era menino e foi naquela época que o conhecera
e ao “Viajante sem Porto”.
No entanto, muito antes,
mestre Manuel já viajava com o seu saveiro pelos portos do recôncavo, levando
frutas para as feiras, trazendo tijolos e telhas para as construções da cidade
nova.
Aparenta trinta anos.
Ninguém lhe dará os cinquenta que trás no costado. Todo ele é de uma cor só, um
bronze escuro, e é difícil dizer se mestre Manuel é branco, negro ou mulato.
É um marinheiro cor de
bronze, isso sim, um marinheiro que raramente fala e que é respeitado em toda a
zona do cais do porto da Baía, da Feira de Água dos Meninos, dos botequi ns do cais, dos botequi ns
de todos os pequenos portos onde pára o seu saveiro. O Gordo corta o seu
silêncio com uma pergunta:
- Você já salvou afogado,
mestre?
Mestre Manuel abandona o
cachimbo, estira as pernas:
- Num dia de temporal, na boca da barra, um
saveiro virou. O vento apagou as lanternas todas. Foi um dia terrível, parecia
dia de juízo…
O Gordo se certifica que a
noite em que vão está clara e amiga.
- Eu vinha também navegando nesta noite, me
aguentando no temporal. Minha lanterna também tinha se apagado, e ninguém
enxergava tiqui nho na frente dos
olhos.
António Balduíno gosta da
vida dos mestres de saveiro. Sorri. Mas mestre Manuel está sério. Puxou uma
fumaça do cachimbo:
- A gente via a luz da Baía. Parecia bem
pertinho mas estava longe cada vez mais. A gente nunca chegava para perto dela.
Nessa noite o mar andava brabo, tinha brigado com o rio.
Fez uma cara séria.:
- É ruim quando o mar se zanga com o rio… Dá
em tempestade…
- E o saveiro?
Mestre Manuel parecia ter
esquecido o saveiro:
- Ia levando uma família que vinha das festas
de Cachoeira. Eles tinham pressa em chegar e não ficaram para o navio que só
tinha no outro dia. Os jornais falaram nisso…
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