Episódio Nº 144
O “Viajante Sem Porto”
entrou no cais debaixo do aguaceiro. Maria Clara prepara um café para eles.
Partirão logo à noite, mal o saveiro esteja carregado.
O urso fica amarrado no
porão. Mestre Manuel dá notícias do Gordo que voltou a vender jornais e
enterrou a avó. Jubiabá continua vivo a fazer feitiços e a presidir a macumbas.
Joaqui m
é visto diariamente na “Lanterna do Afogado” com Zé Camarão. António Balduíno
quer notícias de todos os conhecidos e também da cidade, do cais, dos navios
que chegam e partem. Novamente ele vai para o mistério do mar.
Quando ele fugiu - tinha
apanhado uma surra tremenda do peruano Miguez - não sabia rir mais. Andava com a cabeça
atravancada com as histórias de Jubiabá, com a vergonha da surra que tomara,
com o fim da sua carreira como boxeur, com o noivado de Lindinalva.
Agora sabia rir de novo e
iria com certeza gostar das histórias trágicas de Jubiabá. Porque na sua fuga
de dois anos vira muita miséria. A sua gargalhada tem hoje um tom cruel. E no
seu rosto há um talho. Foram os espinhos da noite do cerco.
Mestre Manuel pergunta
pela história daquele talho. Maria Clara fica espiando no fundo. António
Balduíno conta e pensa no mar, nos guindastes do cais, nos navios negros que
partem na noite.
Foi numa noite assim de
temporal que Viriato entrou pelo mar a dentro. Os siris habitaram o seu corpo e
chocalhavam. Também o velho Salustiano foi procurar no mar o caminho de casa. E
uma mulher que se jogara no mar com uma pedra no pescoço?
O saveiro balança nas
águas. Na vinda António Balduíno pensara em jogar o bote em cima das coroas de
pedra. Hoje ninguém vê as coroas. As águas taparam tudo e Mestre Manuel não
cederia o leme a ninguém.
Seria rápido. O saveiro
bateria numa coroa acabaria a conversa entre Maria Clara e Rosenda Rosedá. (Maria
Clara tem os cabelos em desordem atirados pelo vento e deles vem um perfume do
mar. Talvez ela nunca tenha habitado numa casa, talvez seja filha do mar).
O cachimbo de Manuel se
apagaria. E as águas do rio cobririam tudo que o rio está cheio e chega a fazer
ondas como se fosse o mar.
Mas mestre Manuel não cede
o leme a ninguém. O vento sacode as árvores nas margens. Muito ao longe brilha
a lanterna de outro saveiro. Na escuridão dos matos os vagalumes piscam.
O vento carrega o saveiro
que voa sobre as águas como uma lancha a gasolina. Nesse momento, no meio do
temporal, eles estão bem perto da morte. Um desvio do leme e eles se jogarão
sobre as coroas de pedra que estão invisíveis.
António Balduíno vai de
papo para o ar, pensando estas coisas. No céu não vê nenhuma estrela, somente
nuvens negras e carregadas correm açoitadas pelo vento.
De Maria Clara vem este
cheiro de maresia. E o mar está próximo. O saveiro está chegando na boca da
barra. As margens do rio vão ficando para trás, os povoados dormem sem luz.
António Balduíno pensa que
afinal a vida é besta, que não vale a pena viver. Viriato, o Anão, sabia destas
coisas. E a estrada do mar é larga. Hoje é larga e revolta. O dorso verde do
mar se agita. Também é um convite.
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