António Lobo Antunes |
Crónica de António Lobo
Antunes
António Lobo Antunes, proveniente de uma família da alta burguesia, foi criado em Lisboa, e licenciou-se em Medicina, optando pela especialidade de Psiquiatria.
Entre 1970 e 1973 viveu em Angola, onde participou, como tenente médico do Exército, na Guerra do Ultramar.
Posteriormente exerceu a profissão no Hospital Miguel
Bombarda, em Lisboa, até 1985.
Em 1979 publicou os primeiros livros, Memória de Elefante e Os
Cus de Judas, que obtiveram grande êxito e muito boa receptividade da
critica, seguindo-se, em 1980, “Conhecimento do Inferno”.
Estes primeiros livros são marcadamente biográficos, e estão muito ligados ao
contexto da guerra colonial e transformaram-no
imediatamente num dos autores contemporâneos mais lidos e discutidos, no âmbito
nacional e internacional.
A Crónica que segue, publicada na Revista Visão, revela-nos o seu pensamento sobre os actuais dirigentes políticos em Portugal:
«Perguntam-me muitas
vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a pergunta
surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum. Existe um
bando de meninos, a quem os pais vestiram casaco como para um baptizado ou um
casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é
giro
- Eh pá embora usar um
pin?
que representa a
bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey
- Embora pôr o Rato
Mickey?
mas um deles lembrou-se
do Senhor Scolari que convenceu os portugueses a encherem tudo de bandeiras,
sugeriu:
- Mete-se antes a
bandeira como o Obama e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as play-stations
virem da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam, todos contentes,
que engraçado, a mandarem na gente.
- Agora mandamos em
vocês durante quatro anos, está bem?
Depois de prometerem
que, no fim dos quatro anos, comem a sopa toda e estudam um bocadinho em lugar
de verem os Simpsons. No meio dos meninos há um tio idoso, manifestamente
diminuído, que as famílias dos meninos pediram que levassem com eles, a fim de
não passar o tempo a maçar as pessoas nos bancos, de modo que o tio idoso, (actual Ministro dos Negócios Estrangeiros) também de pin
- Ponha que é curtido,
tio para ali anda a fazer patetices e a dizer asneiras acerca de Angola, que os
meninos acham divertidas e os adultos, os tontos, idiotas. Que mal faz? Isto é
tudo a fazer de conta.
Esta criançada é
curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser criticadas pelos nomes ou
pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e eu não sei se os nomes que usam
são verdadeiros: existe um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não
juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé?
É que tenho a impressão de estar num jogo de
índios e menos vinho não lhes fazia mal. No lugar deles arranjava outros
pseudónimos: Touro Sentado, Nuvem Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro, também
é americano, pá, e, sinceramente, tanto álcool no jardim-escola preocupa-me. A
ASAE devia andar de olho na venda de espirituosas a menores.
Outra coisa que me
preocupa é a ignorância da língua portuguesa nos colégios. Desconhecem o
significado de palavras como irrevogável. Irrevogável até compreendo, uma coisa
torcida, e a gente conhece o amor dos pequerruchos pelos termos difíceis,
coitadinhos, não têm culpa, mas quando, na Assembleia, um deles declarou:
- “Não pretendo
esconder nem ocultar”… apesar da palermice me enternecer alarmou-me um nadita,
mau grado compreender que o termo sinónimo seja complicado para alminhas tão
tenras. Espíritos tortuosos ou manifestamente mal formados insinuam, por pura
maldade, que os garotos mentem muito, o que é injusto e cruel. Eles, por
inevitável ingenuidade, não mentem nem faltam às promessas que fazem: temos de
levar em conta a idade e o facto da estrutura mental não estar ainda formada, e
entender que mudar constantemente de discurso, desdizer-se, aldrabar, não
possui, na infância, um significado grave. A irrealidade faz parte dos cérebros
em evolução e, com o tempo, hão-de tornar-se pessoas responsáveis: não podemos
exigir-lhes que o sejam já, é necessário ser tolerante com os pequerruchos,
afagá-los, perdoar-lhes. Merecem carinho, não crítica, uma festa na cabecinha
do garoto que faz de primeiro-ministro, outra na menina que eles escolheram
para as Finanças e por aí fora. Não é com dureza desnecessária e espírito
exageradamente rígido que os educamos. No fundo, limitam-se a obedecer a uns
senhores estrangeiros, no fundo, tão amorosos, que mal fazem eles para além de
empobrecerem a gente, tirarem-nos o emprego, estrangularem-nos,
desrespeitarem-nos, trazerem-nos fominha, destruírem-nos? São miúdos queridos,
cheios de boa vontade, qual o motivo de os não deixarmos estragar tudo à
martelada? Somos demasiado severos com a infância, enervam-nos os impetuosos
que correm no meio das mesas dos restaurantes, aos gritos, achamos que
incomodam os clientes, a nossa impaciência é deslocada. Por trás deles há
pessoas crescidas a orientarem-nos, a quem tentam agradar como podem à custa
daqueles que não podem.
Os portugueses, e é com mágoa que escrevo
isto, têm sido injustos com a infância. Deixem-nos estragar, deixem-nos
multiplicar argoladas, deixem-nos não falar verdade: faz parte da aprendizagem
das mulheres e homens de amanhã.
Sigam o exemplo do Senhor Presidente da
República que paternalmente os protege, não do senhor Ex-Presidente da
República, Mário Soares, que de forma tão violenta os ataca e, se vos sobrar
algum dinheiro, carreguem-lhes os telemóveis para eles falarem uns com os
outros acerca da melhor forma de nos deixarem de tanga. Qual o problema se há
tanto sol neste País, mesmo que não esteja lá muito certo de o não haverem
oferecido aos alemães? E, de pin no casaco que nos fanaram, isto é, de pin
cravado na pele (ao princípio dói um bocadinho, a seguir passa).
Encorajemos estes
minúsculos heróis com um beijinho, cheio de ternura, nas testazitas
inocentes."
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