segunda-feira, dezembro 16, 2013

O Gordo, ele era muito religioso e enlouqueceu...
JUBIABÁ

Episódio nº 190


A rua estava cheia. Homens que não tinham nada com o caso paravam para ver no que dava aquilo. Um disse ao companheiro.

 - Aposto que eles voltam…

 - Cincão como ficam…

Meninos e meninas que brincavam num beco próximo correram para apreciar o espectáculo. Achavam aquilo divertido como António Balduíno achara divertida a prisão daquele agitador no cais do porto muitos anos atrás.

Gritavam quando os operários gritavam. E se divertiam imensamente. Trepado no poste o operário continuava o seu discurso. Os padeiros da Feira de Sant’Ana escutavam e alguns estavam convencidos a voltar.

De repente choveu bala. Os investigadores atiravam, a cavalaria investiu contra os operários. Houve correria, gente pisada, luta de homem contra homem.

António Balduíno já derrubara um, quando viu o Gordo correndo na sua frente com os olhos esbugalhados e as banhas da cara balançando.

O operário continuava o seu discurso mesmo contra as balas. António Balduíno agora vê o Gordo que levanta o cadáver de uma negrinha baleada e sai gritando pela rua:

 - Onde é que está Deus? Quede Deus?...


Os padeiros da Feira de Santa’Ana voltaram no mesmo caminhão. Estendidos na Baixa dos Sapateiros ficaram dois grevistas. Um está morto mas o outro ainda pode sorrir.

Quem é aquele negro que vai assim de braços estendidos pelas ruas calmas ou movimentadas da cidade? Porque ele blasfema, por que chora, por que pergunta onde está Deus?

Por que ele leva os braços estendidos para a frente como se carregasse alguma coisa e passa sem ver nada, sem reparar nos homens e mulheres que reparam nele, sem olhar a vida que se movimenta em torno, sem ver o sol que brilha?

Para onde ele vai alheio a tudo? Que levará ele nos braços, que coisa será essa que ele balança com tanto carinho? Que coisa será essa que olhos humanos não vêm e que ele aconchega no peito suavemente?

Que quererá esse negro de olhos tristes que passa pelas ruas da cidade nas horas de maior movimento? Ele repete a todos que passam perto de si a mesma pergunta angustiada:

 - Onde está Deus? Onde está Deus?

Sua voz é desolada e trágica. Quem é esse homem que impressiona todos na cidade? Ninguém sabe.

Os operários que fizeram a greve sabem que é o Gordo que enlouqueceu quando viu a bala do revólver de um investigador matar uma negrinha em frente a uma das padarias das “Panificadoras Reunidas” no dia de um comício.

Sabem que ele carregara o cadáver da pretinha até à casa do pai de santo Jubiabá e que fora todo o tempo repetindo aquela mesma pergunta:

 - Onde está Deus?

Ele era muito religioso e enlouqueceu. Agora anda com os braços estendidos como se ainda levasse a pretinha baleada.

Não faz mal a ninguém, é um louco manso.

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