O Gordo, ele era muito religioso e enlouqueceu... |
JUBIABÁ
Episódio nº 190
A rua estava cheia. Homens que não
tinham nada com o caso paravam para ver no que dava aqui lo.
Um disse ao companheiro.
-
Aposto que eles voltam…
-
Cincão como ficam…
Meninos e meninas que brincavam num beco
próximo correram para apreciar o espectáculo. Achavam aqui lo
divertido como António Balduíno achara divertida a prisão daquele agitador no
cais do porto muitos anos atrás.
Gritavam quando os operários gritavam. E
se divertiam imensamente. Trepado no poste o operário continuava o seu discurso.
Os padeiros da Feira de Sant’Ana escutavam e alguns estavam convencidos a
voltar.
De repente choveu bala. Os
investigadores atiravam, a cavalaria investiu contra os operários. Houve
correria, gente pisada, luta de homem contra homem.
António Balduíno já derrubara um, quando
viu o Gordo correndo na sua frente com os olhos esbugalhados e as banhas da
cara balançando.
O operário continuava o seu discurso
mesmo contra as balas. António Balduíno agora vê o Gordo que levanta o cadáver
de uma negrinha baleada e sai gritando pela rua:
-
Onde é que está Deus? Quede Deus?...
Os padeiros da Feira de Santa’Ana
voltaram no mesmo caminhão. Estendidos na Baixa dos Sapateiros ficaram dois
grevistas. Um está morto mas o outro ainda pode sorrir.
Quem é aquele negro que vai assim de
braços estendidos pelas ruas calmas ou movimentadas da cidade? Porque ele
blasfema, por que chora, por que pergunta onde está Deus?
Por que ele leva os braços estendidos
para a frente como se carregasse alguma coisa e passa sem ver nada, sem reparar
nos homens e mulheres que reparam nele, sem olhar a vida que se movimenta em
torno, sem ver o sol que brilha?
Para onde ele vai alheio a tudo? Que
levará ele nos braços, que coisa será essa que ele balança com tanto carinho?
Que coisa será essa que olhos humanos não vêm e que ele aconchega no peito
suavemente?
Que quererá esse negro de olhos tristes
que passa pelas ruas da cidade nas horas de maior movimento? Ele repete a todos
que passam perto de si a mesma pergunta angustiada:
-
Onde está Deus? Onde está Deus?
Sua voz é desolada e trágica. Quem é
esse homem que impressiona todos na cidade? Ninguém sabe.
Os operários que fizeram a greve sabem
que é o Gordo que enlouqueceu quando viu a bala do revólver de um investigador
matar uma negrinha em frente a uma das padarias das “Panificadoras Reunidas” no
dia de um comício.
Sabem que ele carregara o cadáver da
pretinha até à casa do pai de santo Jubiabá e que fora todo o tempo repetindo
aquela mesma pergunta:
-
Onde está Deus?
Ele era muito religioso e enlouqueceu.
Agora anda com os braços estendidos como se ainda levasse a pretinha baleada.
Não faz mal a ninguém, é um louco manso.
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