António Lobo Antunes |
MERCEDES
Desde que me reformei ando para aqui como um fantasma. Ligo a televisão, aborreço-me,
desligo a televisão, abro o jornal, aborreço-me, poiso o jornal, deito-me para
uma sesta, não durmo, levanto-me da cama, vou lá abaixo ao café, peço um café,
deixo-o esfriar sem dar por isso, volto para casa ou fico a olhar uma mesa de
viúvas, uma delas de cãozito ao colo, a dar-lhe bocaditos de biscoito,
conversando de netos e doenças, que é mais ou menos a mesma coisa.
Ignorava que houvesse tanta criança inteligente
e tanta angina em
Portugal. As viúvas de cabelo pintado de louro e o pó de
arroz a flutuar-lhe em torno, não pegado à cara, com mais perfume do que carne,
percebo que baixam a voz para falarem de mim.
-
Não é nada mal aquele...
Apesar de me faltar cabelo e da placa
dos dentes, aperfeiçoo a gravata para ficar menos mal ainda, dou um jeito ás
têmporas, uma, a mais gordinha, não me tira os olhos de cima, usa anéis
enormes, em quase todos os dedos e, de vez em quando, dá a impressão que me
sorri.
O dono do Café no meu ouvido.
-
A dona Mercedes parece que simpatiza com o senhor Pinto e, confidencial:
-
O marido deixou-a bem na vida... o que não me aquece nem arrefece, mentira,
aquece-me um bocado, faz sempre jeito, espreito a dona Mercedes com mais
interesse e encontro os olhos dela fixos nos meus e uma espécie de suspiro a
aumentar e a diminuir o peito considerável, uma segunda viúva para a dona
Mercedes.
-
O cavalheiro elegante simpatiza consigo.
A dona Mercedes baixa os olhos, aumenta
o pó de arroz das bochechas e fita-me de novo, uma terceira viúva.
-
Vai acabar em romance não tarda.
Volto para casa envergonhado, moro mesmo
em frente do Café, num prédio com salão de beleza Recupere a Mocidade no
primeiro andar e eu três assoalhadas por cima da mocidade recuperada, há qui nze dias, na minha caixa do correio, para além da
publicidade do costume e do aviso habitual das Finanças, que não tem mais nada
que fazer senão incomodar-me, um sobrescrito cor de rosa com o meu nome no lado
do destinatário, Mercedes Esteves, numa caligrafia caprichada, no lado do
remetente, no interior da página cor de rosa também, com um par de pombinhos
azuis a segurarem, cada qual, a sua ponte de um laçarote branco e a mesma
caligrafia caprichada:
Exmo Senhor o telefone da minha
residência é o Tal e Tal, aguardo com esperança uma comunicação sua.
Respeitosamente Mercedes do Carmo Guerreiro Esteves, com um arabesco na ponta,
que uma rosa terminava, e o baton de um beijo, ou não mencionando um cheiro tão
espesso, tão forte, tão vivo, que tive de me encostar à parede para não cair.
Deixei imediatamente de ser um reformado
fantasma, subi as escadas numa leveza de vinte anos. (tenho setenta e cinco).
Sem ligar à televisão nem ao jornal, não
me deitei para uma sesta, não dormi, marquei o número uma primeira vez,
respondeu uma voz solene:
-
Agência Céu é Seu, funerais, trasladações.
Percebi que tinha trocado um três por um
nove. Marquei de novo, com o coração irregular, uma criatura bem na vida,
prédios, terras, se calhar uma casa na praia, que são coisas que naturalmente
perturbam os ventrículos, um
-
Siiiiiiiiiiim? de veludo transtornou-me a orelha, respondi num gaguejo
-
Chegou-me uma carta...
Recebi uma pausa comovida em que se
embrulhou um
-
Estava com tanto medo que me tivesse esquecido consegui a custo
-
Como podia esquecê-la? que continha dúzias de anéis e um sorriso no topo, e
encontrámo-nos nessa tarde num Café diferente, longe das restantes viúvas, eu a
cabeleira loira e um vestido prateado que lhe acentuava os volumes, silenciosos
um diante do outro, tímidos, nervosíssimos, a partilharmos um chazinho de
tília, segurando a asa da chávena de mindinho em antena até os mindinhos se
tocarem, se entrelaçarem, se prenderem, explicar-lhe
-
Chamo-me José Pinto e sou reformado do Exército sem acrescentar que no posto de
Sargento, não cheguei a oficial por preguiça, escutei a palavra
-
Exército... num suspiro feliz, completado por um
-
Um homem viril... e talvez viril, de facto, embora trabalhasse de escriturário,
há escriturários marciais, capazes de se sacrificarem pela pátria, o mindinho
dela enrolou-se no pulso...
-
José... O meu mindinho enrolou-se no pulso
-
Mercedes... a sentir, palavra de honra, o beijo do papel na minha boca,
delicado, suave, um joelho contra o meu, um sapato a pisar-me com doçura...
-
Se sonhasse como me faz feliz, José... apesar de um dos anéis me trilhar um
bocadinho a pele, o apartamento dela tão feminino, naperons, rendas, bonecos de
louça, quadros com ninfas, uma sereia quase de mármore, novelos de tricot num
cestinho, um hamster a pedalar a sua roda, nós perto um do outro num sofazito
de verga onde o decote aumentava, o cãozito estendido numa almofada a olhar-nos
numa amizade compreensiva, e nisto um sujeito com o dobro do meu tamanho e
metade da minha idade a puxar-me a gravata
-
Quem é este moinante?... empurrando-me para o patamar...
- Pisga-te... fazendo-me tropeçar nos
degraus, desequi librar-me, equi librar-me, desequi librar-me
de novo, o sujeito a censurar à Mercedes
-
Nunca mais tens juízo, cretina? e a acrescentar:
-
É o qui nto este mês...
A Mercedes chorosa
-
Já não posso receber amigos?... seguido de:
-
Não me deixes Moisés... seguido de:
-
Juro que não volta a acontecer... e não me lembro de mais nada porque um vaso
de flores atirado pelo Moisés lá de cima, me acertou na cabeça.
Aliás, nem tenho tempo para continuar
porque é a hora de ir ao Centro de Enfermagem mudar a ligadura do penso.
António Lobo Antunes
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