quarta-feira, março 12, 2014

Voltando, porém, aos assuntos do comandante...
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 27










Mesmo de Medicina entende um pouco, para não dizer bastante, e é ele quem cuida, com acerto e devotamento, das gripes brabas e frequentes de Dondoca. Já tive ocasião de vê-lo (pois ultimamente, em mais uma prova de confiança e estima, abriu-me ele, em plena tarde, a porta dessa sua casa militar onde eu só penetrava à noite e furtivamente), as mangas da camisa arregaçadas, a banhar em água quente, depositada numa bacia, os mimosos pés de Dondoca, envolvendo-os depois numa toalha.

 Segundo o Meritíssimo, não existe melhor tratamento para resfriados e gripes. Bom tratamento para a doente e para o improvisado médico, parece-me, pois, com o pretexto de banhar os pés da moça, as mãos salientes do juiz sobem por vezes aos joelhos e adjacências, fazendo Dondoca rolar na cama, rindo de gozo e de safada, penicando-me um olho cúmplice.

 Ele murmura-lhe ao ouvido palavras doces, frases ternas: “minha bichinha, coitadinha, está doentinha”.

Tocante espectáculo o desse homem ilustre, glória da jurisprudência baiana, acocorado ante uma bacia de flandres, a lavar, a esfregar, a beijar os pés de humilde mulata, de poucas luzes e nenhum cabedal. Renovada prova de seus bons sentimentos que aqui proclamo, aproveitando-me da ocasião.

Disse-me, quando sobre minha dúvida o consultei, não constituir surpresa para ele a fácil credulidade dos ouvintes do comandante, pois estavam ante provas concretas de suas afirmativas: o diploma enquadrado, a Ordem de Cristo, importantíssima! a bússola, o telescópio.

Como duvidar, como dar fé e valia às maledicências de Chico Pacheco, apenas um ascendente daquelas más-línguas ainda hoje a infestar nosso pacato subúrbio, a maldizer dos outros, assacando misérias contra a honra alheia.

Anda ultimamente o nosso erudito magistrado bastante melindrado por lhe haverem chegado aos ouvidos notícias de uma discussão aqui travada a propósito de sua carreira.

Não sei quem lhe levou os ecos do debate e não quero arriscar nomes, pois os disse-que-disse, os mexericos e mexeriqueiros pululam em nossa minúscula comunidade.

De qualquer maneira, devo louvar o indiscreto e sua indiscrição, pois do relato saiu acrescido meu crédito junto ao Meritíssimo. Ao fato devo inclusive o convite para acompanhá-lo à casa de Dondoca, uma confortadora prova de amizade, mesmo de intimidade.

Bem sabemos que facilmente leva um homem casado um conhecido qualquer a seu lar e à presença de sua esposa; difícil é levá-lo à casa e à presença da amante. Só os íntimos, os fraternais, merecem tal prova de confiança.

Isso por tê-lo defendido quando Otoniel Mendonça, um puxasaco de Telêmaco Dórea, alardeou aos berros ter-se o Dr. Siqueira aposentado como juiz da capital após haver sido seu nome por três vezes vetado nas listas tríplices para desembargador.

Tendo declarado o chefe do governo, quando da última vaga, que, se obrigado a escolher entre um rato de esgoto e o Meritíssimo, nomearia o rato - roubava e fedia menos, imaginem!

Indignado, defendi veemente a honra insultada do mestre. Eu tinha velhas contas a ajustar com esse Otoniel Mendonça e estava à espera de oportunidade.

Sujeitinho ainda relativamente jovem, fizera-me uma falseta quando arrastávamos os dois a asa a uma cortesã em férias, caída não sei por que cargas-d’agua em Periperi.

 A lembrança da maquilada Manon encheu-me de indignação e eloquência, despejei meu despeito, alguns adjectivos duros em cima do cretino, e obtive a aprovação da assistência. O próprio Otoniel, assustado ao ver-me tão caloroso, recuou de suas afirmativas, declarou-se admirador do juiz, estava apenas contando histórias que circulavam na Bahia. Além de caluniador, covarde, como vêem.

Voltando, porém, aos assuntos do comandante, objecto real e único dessas minhas considerações, expus o problema a Telêmaco Dórea, o poeta modernista. Haviam melhorado nossas relações, tensas nos últimos tempos.

 Viera ele procurar-me, muito cheio de dedos e gentilezas, para cumprimentar-me por um soneto de minha autoria - alexandrinos bem medidos, graças a Deus! - publicado num jornalzinho simpático, de propriedade de um amigo meu, rapaz inteligente e esforçado.

Há quem o tache de achacador, acusando-o de arrancar dinheiro da operosa colónia espanhola, verrinas tremendas contra os comerciantes que se recusam a anunciar em seu periódico.

Creio não passar tudo isso de intrigas e balelas, prefiro não tomar conhecimento. Telêmaco gostara realmente do soneto, não economizou elogios. Comparou-me a Pethion de Vilar e Artur de Sales, tocou-me com aquele espontâneo reconhecimento de minha veia poética.

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