Cidade da Beira atravessada pelo Rio Chiveve. |
Cidade da Beira
em Moçambique
Completam-se trinta e nove anos no próximo mês de Setembro desde que saí da Beira rumo a Portugal e ao Quadro Geral de Adidos.
Três anos, apenas três anos, durante
os quais trabalhei na Beira como funcionário público e um manancial de
recordações foram despertas pela reportagem da Anabela Saint-Maurice que
acompanhada pelo arquiteto Francisco de Castro visitaram, em jeito de romagem, a
cidade da Beira em Moçambique e que passou na RTP.
Atravessada pelo rio Chiveve, pequeno
curso de água que só era grande por altura das marés-altas, a Beira possuía um
clima de intimidade social que a tornaram cúmplice de muitas vidas.
Dizia-se até, a esse propósito, que
quem bebesse a água do Chiveve ficaria para sempre preso à cidade incapaz de se
furtar aos seus sortilégios.
Sortilégio e exotismo emprestado por uma população que era um “caldinho” de raças entre brancos, negros, indianos,
chineses e, claro, os inevitáveis mestiços, marca da colonização portuguesa que fazia daquela pequena comunidade de pessoas um mostruário multirracial em
pacífica e harmoniosa convivência.
A minha experiência de vida na cidade
da Beira foi muito diferente da do arquitecto Francisco de Castro responsável
pela construção da fase final do Grande Hotel, da lendária Estação dos Caminhos de Ferro e de outros prédios notáveis
da cidade e que, aos 84 anos, acompanhou a jornalista Anabela numa visita à
cidade que ele próprio ajudou a construir e à qual já não voltava também há
mais de 30 anos.
E fê-lo, para surpresa minha, com um
estado de alma revelador do carácter de um homem que soube compreender a
experiência da vida por que passou, intensa e feliz, por certo, e mesmo quando,
numa última “provocação”, a jornalista lhe perguntou o que é que ele tinha
achado da visita respondeu, com um ligeiro sorriso à mistura, que “nunca me
enganei nas ruas”!...
Talvez a colonização levada à prática
pelos países europeus em África tenha sido uma inevitabilidade histórica - foi com certeza - e por
isso vamos apenas culpar a história por tudo quanto aconteceu mas esta reportagem, e perdoem-me os moçambicanos, deixou rastos de nostalgia em todos
nós que vivemos e trabalhámos na cidade da Beira.
A vida dos portugueses que viviam e
trabalhavam na Beira, poderia ser Nampula ou Maputo mas é da Beira que estamos
a falar, estava montada sobre um equívoco, um terrível equívoco, que era tanto
mais forte quanto mais prolongada e intensa tinha sido ali a vivência das
pessoas, algumas até lá nascidas.
Aquela terra não era a deles, nunca tinha sido e eles foram vítimas
desse erro, desse engano, pelos autores da política colonialista.
A vida da maioria dos portugueses em
África era inebriante: por um lado, as vantagens de serem brancos numa
sociedade em que eles dominavam, por outro, a relação com a natureza, a
paisagem, o espaço, o pôr-do-sol, o ritmo, a cor, o cheiro, a convivência, era
tudo tão atraente e convidativo que o equívoco se tornou doença… loucura…
Muitos chegavam a interromper as férias de 6 meses na metrópole, a que tinham direito por não suportarem a falta da sua África...
África era sedução, bebedeira, ópio, encantamento e o fim só poderia ter sido aquele que foi… dor, angústia, desespero, à boa maneira de um drama Shakespeariano.
África era sedução, bebedeira, ópio, encantamento e o fim só poderia ter sido aquele que foi… dor, angústia, desespero, à boa maneira de um drama Shakespeariano.
Por tudo isto foi muito reconfortante
ouvir e ver o Arquitecto Francisco de Castro, os seus cabelos brancos, olhar atento,
discurso inteligente, ele que deixou obra feita na Beira, uma tornada inútil e
já quase desfeita como o Grande Hotel, hoje uma espécie de pardieiro onde vivem
centenas de famílias com vidas mais ou menos obscuras ocupando cada uma delas
um quarto como se fosse uma casa, - não sei se neste momento ainda será assim - a outra, a Estação dos Caminhos de Ferro da
Beira que continua linda como sempre foi e bem conservada a provocar alegria
nos olhos do seu arquitecto.
Pergunto a mim próprio se gostaria
também de lá voltar, pergunto e não sei responder.
Foram três anos ou uma vida e se foi
uma vida que vida foi?
Qualquer tentativa de voltar ao
passado é sempre um processo traumático que nada acrescenta às nossas recordações para além do choque
resultante do confronto do que é o hoje e foi o ontem.
Aparentemente, o arquitecto Francisco
de Castro terá passado bem por esse teste mas pareceu-me que dentro dele, ao
longo daquele regresso ao passado, escondeu, com muita subtileza, emoções e
sentimentos que vão deixar marcas para o resto da sua vida que eu desejo, sinceramente,
que seja ainda muito longa.
Quanto a mim, aqueles 3 anos que lá
vivi, foram uma confusão de coisas: umas muito boas e outras muito más, uma
espécie de tumulto do foro íntimo de natureza sentimental relacionado com um divórcio com crianças pequenas pelo meio vivido no melhor dos cenários de uma África
que nos aproxima das nossas origens.
Não... pensando bem, não gostaria de lá
voltar.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home