terça-feira, abril 29, 2014

"Um marinheiro não se dobra a tristezas"
OS VELHOS

 MARINHEIROS

Episódio Nº 66











Passaram-se os anos, foi desaparecendo o Comandante Vasco Moscoso de Aragão das pensões de mulheres das salas dos castelos. Já não era também o chefe, o patrão da firma Moscoso & Cia. Ltda.

O negro Giovanni morrera a repetir-lhe que tomasse cuidado com Menendez, o gringo não prestava. Mas quando Vasco quis seguir o conselho, assumir realmente a direcção dos negócios, Menendez era o verdadeiro dono da firma.

Vasco gastara naqueles dez anos de esbórnia o que possuía e o que não possuía, sua conta devedora era espantosa. Foram lentas e complicadas negociações, com advogados ávidos e sabidos.

Finalmente Vasco deixou a firma, recebendo uns prédios para aluguel e uma quantidade de apólices do Estado que lhe garantiam renda suficiente para viver com decência. Vendeu naquela ocasião a residência dos Barris, comprou casa menor no Largo 2 de Julho, onde instalou seus instrumentos náuticos, na parede da sala de visitas os diplomas de capitão de longo curso e de Cavaleiro da Ordem de Cristo, no centro da mesa a caixa de vidro com a miniatura do Benedict.

“Um marinheiro não se dobra à tristeza” mesmo quando de milionário passa a simples remediado, quando desaparecem os amigos, já não se renovam os amores, perde o gosto a bebida e o sono chega antes da meia-noite.

Na nova casa, relacionando-se com vizinhos desconhecidos, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão fez-se logo popular e estimado.

Sentava-se numa cadeira na calçada, juntavam-se a ouvi-lo, contava suas aventuras no mar. Tinha sempre uma bonita cozinheira a servi-lo, mulatinha escolhida a dedo.

Outros anos passaram, pratearam-se os cabelos do comandante, já não eram tão lindas suas cozinheiras, a vida tornava-se cara e suas rendas não cresciam. Também os vizinhos não o levaram tão a sério como antes, havia quem dissesse não ter entrado ele jamais num navio, ser o título de comandante resultado de uma brincadeira nos tempos do governo José Marcelino, a Ordem de Cristo paga a peso de ouro quando nadava ele em dinheiro e o Consulado de Portugal na Bahia estava entregue a um comerciante.

Mais de vinte anos depois da cerimónia na Capitania dos Portos, um dia, um tipo à-toa que se estabelecera na rua com uma bomba de gasolina, a quem Vasco, sempre pronto a relacionar-se, a fazer amizades, começou a contar a terrível travessia do Golfo Persa em noite de furacão, interrompeu com uma gargalhada a narração heróica:

- Logo em cima de mim . . . Deixe essas lorotas para engabelar os tolos... Então eu não sei de toda a história? Todo mundo sabe, fica rindo por detrás... Tenho mais que fazer, seu Comandante, não tenho tempo para ouvir lambanças...

“Um marinheiro não se entrega”, foi difícil levantar a crista novamente. Onde andaria Georges Dias Nadreau, hoje com certeza almirante, onde andariam Jerónimo e o Coronel Alencar, e Tenente Lídio e o Tenente Mário?

Dorothy, como seria bom rever teu esguio perfil, teus olhos inquietos, tua face de febre... Viveria ainda Carol, a criar os filhos dos sobrinhos, dizendo-se viúva na cidade de Garanhuns, em Pernambuco?

Ainda ia ele ao porto, fizesse sol ou chovesse, para assistir à entrada e saída dos navios, conhecia todas as bandeiras. Não poderia mais andar de crista erguida ali, no Largo 2 de Julho, nem em outra rua qualquer de Salvador.

Vendeu a casa por bom preço, comprou a de Periperi, um subúrbio onde não chegavam os ruídos da cidade, tomou da mulata Balbina, sua cozinheira e amante, dos instrumentos de navegação, da roda do leme, da escada de cordas, da luneta e do telescópio, dos cachimbos, dos diplomas enquadrados do seu passado nos tombadilhos dos navios, cruzando os mares por entre as tempestades, mudou-se.

Um velho marinheiro de cabeça erguida, a cabeleira ao vento no alto dos rochedos.

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