"Um marinheiro não se dobra a tristezas" |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 66
Passaram-se os anos, foi desaparecendo o
Comandante Vasco Moscoso de Aragão das pensões de mulheres das salas dos
castelos. Já não era também o chefe, o patrão da firma Moscoso & Cia. Ltda.
O negro Giovanni morrera a repetir-lhe
que tomasse cuidado com Menendez, o gringo não prestava. Mas quando Vasco qui s seguir o conselho, assumir realmente a direcção
dos negócios, Menendez era o verdadeiro dono da firma.
Vasco gastara naqueles dez anos de
esbórnia o que possuía e o que não possuía, sua conta devedora era espantosa.
Foram lentas e complicadas negociações, com advogados ávidos e sabidos.
Finalmente Vasco deixou a firma,
recebendo uns prédios para aluguel e uma quantidade de apólices do Estado que
lhe garantiam renda suficiente para viver com decência. Vendeu naquela ocasião
a residência dos Barris, comprou casa menor no Largo 2 de Julho, onde instalou
seus instrumentos náuticos, na parede da sala de visitas os diplomas de capitão
de longo curso e de Cavaleiro da Ordem de Cristo, no centro da mesa a caixa de
vidro com a miniatura do Benedict.
“Um marinheiro não se dobra à tristeza”
mesmo quando de milionário passa a simples remediado, quando desaparecem os
amigos, já não se renovam os amores, perde o gosto a bebida e o sono chega
antes da meia-noite.
Na nova casa, relacionando-se com
vizinhos desconhecidos, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão fez-se logo
popular e estimado.
Sentava-se numa cadeira na calçada,
juntavam-se a ouvi-lo, contava suas aventuras no mar. Tinha sempre uma bonita
cozinheira a servi-lo, mulatinha escolhida a dedo.
Outros anos passaram, pratearam-se os
cabelos do comandante, já não eram tão lindas suas cozinheiras, a vida
tornava-se cara e suas rendas não cresciam. Também os vizinhos não o levaram
tão a sério como antes, havia quem dissesse não ter entrado ele jamais num
navio, ser o título de comandante resultado de uma brincadeira nos tempos do
governo José Marcelino, a Ordem de Cristo paga a peso de ouro quando nadava ele
em dinheiro e o Consulado de Portugal na Bahia estava entregue a um
comerciante.
Mais de vinte anos depois da cerimónia
na Capitania dos Portos, um dia, um tipo à-toa que se estabelecera na rua com
uma bomba de gasolina, a quem Vasco, sempre pronto a relacionar-se, a fazer
amizades, começou a contar a terrível travessia do Golfo Persa em noite de
furacão, interrompeu com uma gargalhada a narração heróica:
- Logo em cima de mim . . . Deixe essas
lorotas para engabelar os tolos... Então eu não sei de toda a história? Todo
mundo sabe, fica rindo por detrás... Tenho mais que fazer, seu Comandante, não
tenho tempo para ouvir lambanças...
“Um marinheiro não se entrega”, foi
difícil levantar a crista novamente. Onde andaria Georges Dias Nadreau, hoje
com certeza almirante, onde andariam Jerónimo e o Coronel Alencar, e Tenente
Lídio e o Tenente Mário?
Dorothy, como seria bom rever teu esguio
perfil, teus olhos inqui etos, tua
face de febre... Viveria ainda Carol, a criar os filhos dos sobrinhos,
dizendo-se viúva na cidade de Garanhuns, em Pernambuco?
Ainda ia ele ao porto, fizesse sol ou
chovesse, para assistir à entrada e saída dos navios, conhecia todas as
bandeiras. Não poderia mais andar de crista erguida ali, no Largo 2 de Julho,
nem em outra rua qualquer de Salvador.
Vendeu a casa por bom preço, comprou a
de Periperi, um subúrbio onde não chegavam os ruídos da cidade, tomou da mulata
Balbina, sua cozinheira e amante, dos instrumentos de navegação, da roda do
leme, da escada de cordas, da luneta e do telescópio, dos cachimbos, dos
diplomas enquadrados do seu passado nos tombadilhos dos navios, cruzando os
mares por entre as tempestades, mudou-se.
Um velho marinheiro de cabeça erguida, a
cabeleira ao vento no alto dos rochedos.
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