Assim dançava nas festas do Palácio.... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 92
E a morena peituda completou em voz baixa:
- Pelo jeito que vão, ela terá pelo menos gémeos...
Durante todo o desenrolar da víspora, o comandante alimentara a
esperança de voltar com Clotilde ao tombadilho na continuação do passeio e da
conversa, sentia-se romântico e perturbado.
Estava para propor-lhe abandonarem a sala, pretextando o calor, oferecendo-lhe
a brisa marinha e as estrelas do descampado céu, quando um grupo de moças e
rapazes aproximou-se da mesa.
- Com licença, Comandante - e
dirigiam-se a Clotilde: - A senhora podia tocar umas coisinhas para a gente
dançar...
Fez-se importante e adulada:
- Não gosto de tocar música de dança.
Executo meus preferidos...
- Ohi - disse em ton de súplica uma
jovem de seus dezoito anos, flor das morenas de Pernambuco - é o último dia a
bordo, para mim pelo menos. A gente queria dançar um pouco. - A seu lado um
rapagão suplicava com os olhos, a sorrir para Clotilde.
- Toque, sim. seja boazinha ... - pediu
outra moça, de bronzeada pele, escorridos cabelos negros, beleza mameluca,
olhos de labareda.
Insistiam os rapazes, e toda aquela
juventude apenas começando a viver, tão ansiosa e frágil, comoveu o comandante
e ele sacrificou o esperado passeio, também instou:
- Toque, sim. Gosto tanto de ouvi-la...
- Nesse caso ... Só para lhe fazer a
vontade, Comandante. Foi para o piano, acompanhada do grupo jovial, avisando:
- Não posso demorar . . . Jasmim está me
esperando...
Os sons apenas começavam a elevar-se e
já a morena pernambucana rodopiava nos braços do atlético namorado, conhecimento
da viagem, paixão fulminante. Ia ele para Fortaleza onde vivia, trabalhava num
banco. Prometia visitá-la em Recife no fim do ano, por ocasião do Natal.
A mameluca de olhos fundos de incêndio
dirigiu-se ao comandante, fez-lhe divertida mesura:
- Dá-me a honra, Comandante, dessa
contradança?
Levantou-se Vasco, tomou da mão da moça.
Fora emérito dançarino, pé-de-valsa conhecido nos seus tempos da Pensão Monte
Cario, sua fama de bailarino até hoje recordada pelos marujos seus
contemporâneos nas costas do Médio e do Extremo-Oriente, no Mediterrâneo e no
Mar do Norte.
Havia duas maneiras de dançar: a “la bruta”,
os corpos juntos, rosto contra rosto, excitando-se ao cálido contacto do par.
Assim dançava na Pensão Monte Cario, no cabaré do Dragão Amarelo, em Hong-Kong,
na misteriosa cave Nilo Azul, em Alexandria.
E
“Ia familiar”, os dedos acenas tocando as costas do par, com um palmo de
separação entre os dois, a postura austera, conversando com a dama. Assim
dançava nas festas do Palácio, nas recepções da sociedade baiana, nos bailes
dos grandes paquetes que faziam a linha entre a Europa e a Austrália.
Assim iniciou o baile com a moça de
sangue índio, de perturbadora beleza lunar. Por que ela lembrava-lhe Dorothy,
se não se pareciam?
Mas havia algo de comum entre as duas,
entre a rapariga de Feira de Sant’Ana e aquela senhorita de Belém: os olhos inqui etos e fulvos, a mal-contida ânsia, um espasmo em
cada gesto, no mais simples, a mesma pressa e avidez de amor. Eram, uma e
outra, a fêmea simplesmente.
E logo a sentiu contra si, a coxa a
tocar-lhe, o seio a crescer em seu peito, o negro cabelo escorrido a roçar-lhe
a face. A moça fechara os olhos e mordia o lábio inferior, Vasco teve medo. Do
piano, Clotilde olhava de cenho carregado, ele tentou afastar aquele corpo
necessitado e louco, mas ela o mantinha próximo.
Compreendeu, uma humildade aprendida em
Dorothy, não ser a ele, Vasco, sessentão de cabelos brancos, que ela se prendia
e entregava na dança. Era ao homem apenas, não lhe importava a idade, a cor, a
elegância, a beleza.
Não demorou a música, felizmente.
Clotilde abreviara a partitura, os pares se separaram, Vasco agradeceu:
- Muito obrigado, senhorita.
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