Vai é fugir desmascado - começou a respoder cico Pacheco |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 71
Onde se conta de como o
comandante parte com destino ignorado ou para cumprir o seu destino, pois ao
destino ninguém escapa neste mundo
- Naquele dia de chuva ininterrupta,
cargas diluviais, vento cortante e frio, chegado do mar alto a varrer o
subúrbio, o céu fechado em cinza-escuro, sem uma nesga de sol, as ruas
encharcadas, também o comandante estava de luto.
Negra fita no boné, negra braçadeira na
manga do paletó de gola ampla. Explicou aos íntimos, com voz comovida, ser data
do aniversário da morte de D. Carlos I, Rei de Portugal e Algarves, assassinado
por exaltados republicanos em 1908, pouco tempo depois de haver-lhe reconhecido
os méritos e tê-lo honrado com a condecoração da Ordem de Cristo.
Todos os anos, naquela data, punha luto o
comandante, em memória do Monarca excelso que das alturas de seu trono, soubera
proclamar e premiar os feitos de quem abria novas rotas ao comércio marítimo.
Na estação, pouco frequentada naquele
dia, num banco voltado para o golfo, Zequi nha
Curvelo perorava, atirando nas fuças de Chico Pacheco (sentado no outro lado da
plataforma, em banco voltado para a rua) aquela Ordem de Cristo, com medalha e
colar, argumento positivamente irrespondível.
Só um irresponsável era capaz da
afirmação gratuita e ridícula: um Rei de Portugal a vender, como se vende
bacalhau ou palitos, comenda tão respeitável, a negociar, como um qui tandeiro qualquer, uma ordem venerável, vinda dos
tempos dos Cruzados e Templários, tão séria e cobiçada que a haviam conservado
os republicanos e para obtê-la pelejavam governantes e diplomatas, cientistas e
generais.
Realmente, era muita infâmia dizer e
ouvir tais disparates; não merecia aquele subúrbio de Periperi a honra de
abrigar, em sua velhice gloriosa, cidadão de tanta fama e prestígio como o
comandante, portador de uma distinção que, na Bahia, apenas J. J. Seabra
possuía: a Ordem de Cristo.
Estava pensando o comandante, ante tanta
inveja e ingratidão, em ir-se embora, levar a outro burgo
mais civilizado o privilégio de contá-lo entre seus habitantes.
- Vai é fugir desmascarado - começou a
responder Chico Pacheco - pregar suas petas noutra freguesia, velho
sem-vergonha...
Não prosseguiu porque chegava o trem das
dez e dele desembarcava misterioso viajante, jamais visto por ali, embrulhado
numa capa de borracha, abrindo um guarda-chuva, a perguntar se alguns dos
senhores sabia onde habitava um certo capitão de longo curso, o Comandante
Vasco Moscoso de Aragão.
Tinha urgência de vê-lo, relevante
assunto a discutir com ele. Amigos e adversários, unânimes, prontificaram-se a
levá-lo à casa de janelas abertas sobre o mar apesar de naquele instante mesmo
haver caído nova carga-d’agua violenta.
E
os chefes dos dois grupos, Chico e Zequi nha,
qui seram ambos informar-se da
natureza do importante assunto que o forasteiro ia discutir com o comandante.
Não se fez de rogado o desconhecido, e,
no caminho de poças sucessivas, onde os pés afundavam, foi contando: um navio
da Companhia Nacional de Navegação Costeira, um Ita dos grandes, arribara
naquela manhã chuvosa com a bandeira a meio-pau.
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