segunda-feira, maio 05, 2014

Vai é fugir desmascado - começou a respoder cico Pacheco
OS VELHOS

MARINHEIROS

Episódio Nº 71










Onde se conta de como o comandante parte com destino ignorado ou para cumprir o seu destino, pois ao destino ninguém escapa neste mundo


- Naquele dia de chuva ininterrupta, cargas diluviais, vento cortante e frio, chegado do mar alto a varrer o subúrbio, o céu fechado em cinza-escuro, sem uma nesga de sol, as ruas encharcadas, também o comandante estava de luto.

Negra fita no boné, negra braçadeira na manga do paletó de gola ampla. Explicou aos íntimos, com voz comovida, ser data do aniversário da morte de D. Carlos I, Rei de Portugal e Algarves, assassinado por exaltados republicanos em 1908, pouco tempo depois de haver-lhe reconhecido os méritos e tê-lo honrado com a condecoração da Ordem de Cristo.

 Todos os anos, naquela data, punha luto o comandante, em memória do Monarca excelso que das alturas de seu trono, soubera proclamar e premiar os feitos de quem abria novas rotas ao comércio marítimo.

Na estação, pouco frequentada naquele dia, num banco voltado para o golfo, Zequinha Curvelo perorava, atirando nas fuças de Chico Pacheco (sentado no outro lado da plataforma, em banco voltado para a rua) aquela Ordem de Cristo, com medalha e colar, argumento positivamente irrespondível.

Só um irresponsável era capaz da afirmação gratuita e ridícula: um Rei de Portugal a vender, como se vende bacalhau ou palitos, comenda tão respeitável, a negociar, como um quitandeiro qualquer, uma ordem venerável, vinda dos tempos dos Cruzados e Templários, tão séria e cobiçada que a haviam conservado os republicanos e para obtê-la pelejavam governantes e diplomatas, cientistas e generais.

Realmente, era muita infâmia dizer e ouvir tais disparates; não merecia aquele subúrbio de Periperi a honra de abrigar, em sua velhice gloriosa, cidadão de tanta fama e prestígio como o comandante, portador de uma distinção que, na Bahia, apenas J. J. Seabra possuía: a Ordem de Cristo.

 Estava pensando o comandante, ante tanta inveja e ingratidão, em ir-se embora, levar a outro burgo mais civilizado o privilégio de contá-lo entre seus habitantes.

- Vai é fugir desmascarado - começou a responder Chico Pacheco - pregar suas petas noutra freguesia, velho sem-vergonha...

Não prosseguiu porque chegava o trem das dez e dele desembarcava misterioso viajante, jamais visto por ali, embrulhado numa capa de borracha, abrindo um guarda-chuva, a perguntar se alguns dos senhores sabia onde habitava um certo capitão de longo curso, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão.

Tinha urgência de vê-lo, relevante assunto a discutir com ele. Amigos e adversários, unânimes, prontificaram-se a levá-lo à casa de janelas abertas sobre o mar apesar de naquele instante mesmo haver caído nova carga-d’agua violenta.

 E os chefes dos dois grupos, Chico e Zequinha, quiseram ambos informar-se da natureza do importante assunto que o forasteiro ia discutir com o comandante.

Não se fez de rogado o desconhecido, e, no caminho de poças sucessivas, onde os pés afundavam, foi contando: um navio da Companhia Nacional de Navegação Costeira, um Ita dos grandes, arribara naquela manhã chuvosa com a bandeira a meio-pau.

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