quarta-feira, junho 25, 2014

A Dª Claudete
Dª Claudete





Na terça-feira. D. Claudete, 92 anos, saco de compras na mão, vinda do supermercado, finou-se em pleno passeio público, com um AVC fulminante.

D. Claudete vivia sozinha. A irmã, um pouco mais nova, está moribunda no hospital há meses. Resta uma sobrinha, desempregada.

Foi ela que tratou do enterro. D. Claudete tinha uma reforma de 200 euros e nenhuma poupança. O subsídio de funeral foi cortado. A sobrinha, sem dinheiro, teve de optar pelo funeral em campa rasa.

No Alto de São João, vai D. Claudete em seu caixão de pinho, quando um funcionário do cemitério tenta pregar um número identificativo no esquife. O homem da funerária impede-o. "O caixão é para devolver", diz. O funcionário acompanha então o escasso cortejo, de quatro pessoas, com um pau na mão e em cima o número identificativo.

O padre, por sua vez, pergunta se as quatro pessoas presentes são católicas praticantes. Nenhuma é. O padre decide então que não vai acompanhar o féretro. Um dos presentes explica ao padre, com alguma irritação, que ele está ali por causa da senhora, católica praticante, e não pelos presentes, e que é sua obrigação acompanhar D. Claudete à sua última morada.

O padre permanece na sua recusa, até que a mesma pessoa lhe pergunta quando custa ir até à campa rasa. 150 euros, responde a santa alma. Recebido o dinheiro, o padre decide-se então a avançar.

Há uma escavadora que vai abrindo buracos, que hão de servir de campas rasas, uns a seguir aos outros. Há terra revolvida e, com a chuva, muita lama. Os sapatos enterram-se na lama que há de cobrir os mortos sem posses.

Chegada à sua última morada, D. Claudete é retirada do caixão e colocada no fundo da campa, através de cordas. O padre, contrariado, lembra que do pó viemos e ao pó voltaremos. Os coveiros cobrem rapidamente de terra D. Claudete. O funcionário espeta o pau com o número da campa de Dª. Claudete.

Ao lado, outras cinco covas esperam os seus destinatários. A escavadora não para. Paf! Paf! Paf! Contas por alto, só nesse dia havia 45 covas aguardando os donos a quem o progresso da nação não bafejou.

O homem da funerária leva o caixão para futuros interessados. Um amigo da sobrinha desempregada paga parte dos 1100 euros que custa, ainda assim, um funeral em campa rasa.

Está uma chuva miudinha. Os sapatos estão cheios de lama. Os quatro acompanhantes de D. Claudete regressam lentamente à vida.

Entre eles, não está o ministro das Finanças, que não foi ao enterro porque não conhecia Dª. Claudete, nem conhece milhares de outras Dª. Claudetes que, um dia destes, se vão finar subitamente no passeio público ou em casa na solidão. E que só poderão ser enterradas em campa rasa, porque o subsídio de funeral foi cortado e já nem chega para tanto.
(Nicolau Santos do Semanário Expresso)


NOTA

Não me parece justo fazer recair sobre o Ministro das Finançaso odioso das circunstâncias em que ocorreu o funeral da Dª Claudete, é apenas uma força de expressão.

No nosso país, a sociedade está em retrocesso. Corta-se no subsídio de funeral como se corta em todos os outros subsídios pela simples razão de que não há dinheiro e os apoios sociais não são prioritários.

Prioritários, são os juros da dívida monstruosa a que chegamos e a grande injustiça está no facto da Dª Claudete, completamente alheia a essa dívida, ser agora vítima dela a favor dos credores.

Esta é a sociedade a que chegamos e não podemos esperar nada de diferente. Fez a Dª Claudete muito bem em morrer, assim, de repente, no meio da rua, atirando-lhes no rosto a sua vida. Tomem lá!...

A Dª Claudete não cantou a Grândola Vila Morena em sinal de protesto. Não tinha forças, estava esgotada. As pessoas que poderiam ter chorado de tristeza no seu funeral há muito que já cá não estão. A Dª Claudete tinha-se esquecido de morrer.

Aos 92 anos, só e na miséria, teve que ser a morte a apiedar- se dela. O corte no subsídio de funeral já não lhe diz respeito. Ela é apenas um corpo em deterioração. O ritual fúnebre que lhe fizeram revela a pouca dignidade que demonstramos para com os nossos velhos mas, se não somos capazes de cuidar deles em vida, em especial as famílias, como havíamos de lhes proporcionar funerais dignos?

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