Derrotando os sábios do Serviço Meteorológicos |
OS VELHOS
MARINHEIROS
(Jorge Amado)
Episódio Nº 128
Quando dona Amparo veio chamá-lo para o
jantar, encontrou-o na mesma posição, largado na rede. Nem a túnica retirara.
Não, não queria comer. Dona Amparo era
mulher de larga experiência da vida, proclamada por hóspedes e vizinhos. Não
lhe parecia doença do corpo o que ele tinha, diagnosticou com acerto e
segurança.
Aqui lo
era desgosto, e dos grandes. Morte de filho único, talvez. Mais provável,
porém, abandono do lar pela mulher. Casado com moça nova, certamente, chegara
em casa e só encontrara a notícia: ela arribara, levando os móveis e a alegria
do pobre homem. Dona Amparo conhecia vários casos desses.
Não queria tomar um trago, pelo menos,
para levantar as forças e combater o calor? Para calor e mulher fujona nada
igual a uma cachacinha. Um trago? Aceitou num gesto de cabeça. Ela trouxe logo
a garrafa, um trago não bastava para sua necessidade.
Fora Vasco bebedor de fama nos seus
tempos. Ultimamente, porém, reduzira-se ao grogue quente, com tanto requi nte preparado em sua casa de Periperi.
Emborcou a garrafa como o fazia em moço,
bebeu sem medida e sem vacilação. Conservava ainda um resto daquela resistência
antiga, pôde manter-se nas pernas e ir à sala de jantar em busca de mais
cachaça.
Os hóspedes, seringueiros do interior,
olharam-no curiosos. Dona Amparo explicou, quando, empunhando a nova garrafa,
ele saiu pelo corredor:
- Coitado! Um caso de dar pena. Um homem
desses, idoso, fardado e tudo, e a mulher, uma vagabunda, fugiu com um cabo,
sujeitinho sem serventia nenhuma. O pobre ficou assim... Esse mundo é enganador
e triste.
Vasco adormeceu, de sono profundo e sem
sonhos, com o calor e a cachaça. Mal pôde arrancar os sapatos e a túnica. Não
chegou a retirar as calças e a camisa. O último gole, ele o tomou já meio
dormido.
Foi ele, assim, o único dos habitantes da cidade
de Belém do Grão-Pará a não sentir no coração, naquela noite, o terror supremo,
o frio da morte, a sensação do fim inapelável.
Porque, quando dona Amparo e os demais
hóspedes saíram porta afora, estremunhados e clamando a Deus, não se lembraram
sequer de sua existência. Raros foram os que, na hora fatal, recordaram-se de
pai e mãe, de esposa e filhos.
Porque, naquela noite, inesperado e
fulminante, sem previsão alguma, derrotando os sábios do Serviço Meteorológico,
contrariando as previsões do tempo, assombrando os rudes e velhos marinheiros,
desencadeou-se sobre o porto e a cidade de Belém temporal nunca visto, furacão
sem exemplo, a maior tempestade de todos os tempos na história daqueles mares
do equador.
Vieram os ventos furiosos, desatados.
Vinham com raiva, zunindo de ódio, apressados e inclementes. Dos quadrantes do
mundo vinham num tufão de vingança, dispostos a tudo destruir para salvar o
sonho.
Veio o ardente Simum com o fogo do
deserto, levantando as areias como espantosa muralha. As Monções chegaram do
Oceano Indico, por onde tanto navegara o comandante, vinham em cerrado grupo e
arrancavam as casas de seus alicerces, revolteando-as no ar como folhas mortas
de árvores.
Negro, a assobiar uma canção de morte,
Harmatã chegou da África, em rodopios, e desamarrou paquetes, atirando-os
contra o cais, rompendo-lhes os mastros e os bueiros. Os ventos Alísios
naufragaram barcos, veleiros e jangadas. O Mistral tomou do iate vindo da
Guiana Francesa e, numa brincadeira macabra, colocou-o de volta a navegar,
rasgou-lhe as velas, arrancou-lhe o leme, arremessando-o para os lados de
Marajó, onde as espantadas tartarugas invadiam aldeias.
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