terça-feira, julho 29, 2014

Deus fizera-o perder o norte...
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 13


















Deus dividiu a vida Fadul aprendera a crer e a confiar em Deus com seu tio Said Abdala, sacerdote maronita de conselho e apetite celebrados.

 Vinham de longe consultá-lo, traziam-lhe tâmaras e uvas que ele comia às mãozadas enquanto resolvia pendências e anunciava o volume das colheitas; o mel das frutas escorria-lhe pela comprida barba negra.

Mudara muito naqueles quinze anos, o tio não o reconheceria,
constatou Fadul saboreando os cajás um a um; mudou por fora e por dentro, prefere os cajás às tâmaras e as uvas não lhe fazem falta, bastam-lhe as jacas, de preferência as moles.

Voltara a nascer naquelas brenhas, o menino vestido com o djelabá ficara para sempre do outro lado do mar.

Deus dividiu a vida dos homens entre a obrigação e o prazer, o choro e o riso. O prazer sem medida de estar ali, chupando cajás na brisa do fim da tarde, escutando passarinhos, vendo-os voar, jóias do escrínio do Senhor.

 Repousando da labuta das últimas semanas, do infinito caminhar, dos perigos de todos os instantes, mascate não conhece domingo ou dia santo.

 Deus fizera-o perder o norte para que tivesse um dia de descanso, folga para o corpo e a alma.

Por que não permanecer ali para sempre, naquele vale idílico,
igual aos animais que se aqueciam ao sol, estirados sobre as
pedras, calangos e teiús — aprendera com os alugados a comer carne de teiú e a saboreá-la, lambendo os beiços e os dedos.

Sobrava comida, fartura de caças e de frutas, jacas olorosas, a
água pura descia das nascentes, o paraíso. Fadul Abdala riu um riso grosso e estrepitoso, no descompasso de seu tamanho, assustando papagaios e lagartos: nesse paraíso faltava o principal que era a mulher.

Pensando em mulher, pensou em Zezinha do Butiá àquelas
horas botando-lhe corpos em Itabuna. Também não podia exigir que ela trancasse a cadeado o xibiu - um abismo! -  apenas porque lhe deixara, num laivo de desvario, duas cédulas de dez mil-réis e um espelho emoldurado para nele contemplar-se, suspirosa.

Suspirosa? Ela ria-lhe na cara:

 - Turco de uma figa, comedor de cebola crua!

 -Turco, não, dobre a língua. Grão-Turco, minha odalisca,
teu senhor e teu escravo... -  era dado a galanteios, pena que a pronúncia não ajudasse.

2

Gostou tanto do lugar que nele pernoitou. Recolheu gravetos,
acendeu fogo para espantar as cobras, vestiu as ceroulas e a
camisa, estendeu-se sobre as folhas secas. Tardou a adormecer, pensando. Na margem do rio, anunciando a lua, o sapo-cururu cantou.

Chegado ao Brasil há quinze anos, Fadul viera para trabalhar
e enriquecer. Enriquecer é a meta de todos os homens, para alcançá-la Deus lhes dá alma e inteligência. Uns cumprem à risca o mandato do Senhor, ganham dinheiro e se estabelecem, outros não conseguem; alma pequena, inteligência curta ou tão-somente pouca disposição para o trabalho, preguiça, malandrice.


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