quarta-feira, julho 30, 2014

Libanês de nascimento e sangue...
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 14

















Tinha um exemplo à mão na mesa de póquer do Hotel Coelho, em ilhéus: alma destemida, audaz, um águia na inteligência, Álvaro Faria, se quisesse, poderia ser um coronel como o irmão, dono de prédios e fazendas, milionário.

Em vez disso, não passava de um troca-pernas, um vadio, sem eira nem beira, vivendo ao deus-dará. Não fossem a mesa farta do mano João, a sorte no jogo, motivo de dúvidas e suspeitas, e a malícia para conceber e executar trampolinices, passaria fome.

Até então Fadul apenas trabalhara num afã desesperado de
burro de carga, cruzando brenhas, enfrentando riscos, as serpentes, as febres, as ameaças de criminosos, frios assassinos.

 Naquele comércio andejo, o pau-de-fogo, presente do capitão Natário, era tão importante quanto a mala repleta de berliques e berloques.

Ainda não enriquecera, longe disso. Nem sequer se estabelecera, como decidira fazer, com casa de negócio num dos vários povoados que brotavam no rastro do cacau, nas encruzilhadas das fazendas, ao passo das tropas e tropeiros.

Sem embargo, não podia se queixar: estava juntando seu pé-de-meia. Sobretudo depois que iniciara a prática da agiotagem.

Multiplicavam-se as estrelas na lonjura do céu. Fuad Karan,
que em Itabuna lia livros em árabe e em português, cidadão ilustrado, mais instruído do que meia dúzia de advogados -  responsável pelo apelido de Grão-Turco que inventara ao ver Fadul rodeado de raparigas no cabaré - lhe afirmara não serem essas estrelas aqui vistas as mesmas que cintilam no céu do Oriente onde eles haviam nascido.

 O Grão-Turco não duvida mas não consegue estabelecer a diferença: estrelas são todas parecidas, belas e longínquas
pedras preciosas, bastaria uma delas para fazer a fortuna
de um filho de Deus.

Quanto à lua, reflectida nas águas do rio, é a mesma, aqui e lá: medalha de ouro fosco, gorda e amarela, com São Jorge cavalgando seu cavalo na faina do dragão.

 O Oriente citado por Fuad, a terra natal, perdera-se na distância, para reencontrá-la seria preciso varar o mar de lado a lado no bojo dos navios.

São outras as estrelas, as frutas também, não lhe fazem falta:
prefere os cajás às tâmaras e de estrelas está bem servido.

Distante e esquecida, a terra natal. Fadul Abdala, o Grão - Turco das putas, o Turco Fadul das casas-grandes, seu Fadu das míseras choupanas, sabe que veio para ficar, não trouxe passagem de volta.

 No lugre de imigrantes chorou todas as lágrimas, não restou nenhuma. Não mudou apenas de país e de paisagem, mudou de pátria.

 Libanês de nascimento e sangue, chamam-no turco por ignorância; se soubesse ver e constatar, proclamaria aos quatro ventos sua fé de grapiúna.

A pátria de um cidadão é o lugar onde ele sua, chora e ri,
onde moureja para ganhar a vida e construir casa de negócio e residência.

Sozinho com a noite e as estrelas naquele pouso desconhecido para onde o conduziu a mão de Deus, Fadul Abdala reconhece e adopta a nova pátria.

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