sexta-feira, julho 04, 2014

O Rapaz do
Trompete





A vida é fugaz, um sopro, um suspiro, um pestanejar. Antes, o nada, depois, o nada de novo. Entre os dois nadas, a vida.
Debruço-me sobre ela, braço esticado, revolvendo com os dedos da minha imaginação as recordações que por lá existem. Puxei uma ao acaso, já amarelecida pela idade…há quantos anos!
Eu teria para aí os meus dezanove, vinte anos, estudava então na Escola Superior Colonial que em 1961 mudou para Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina por causa dos novos ventos da política internacional de então.
O meu pai alugara-me um quartinho numa casa particular pertença de mãe e filha, viúvas, que para sobreviverem arrendaram três quartos que milagrosamente conseguiram fazer sobrar do primeiro andar de um velho prédio de azulejos azuis que dava para o Jardim do Príncipe Real - tal como davam também as magníficas portas do Palacete onde, então, funcionava o meu Instituto.
Estávamos no primeiro ano da década de 60. Em Janeiro, Henrique Galvão numa operação com o nome de código Dulcineia - surripiou, em pleno alto-mar, o paquete Santa Maria para desespero de Salazar  que ficou possesso  e regozijo da tímida oposição.

 Lembro-me perfeitamente de parar no passeio para ver o cabeçalho do jornal “O Século” que relatava, com uma grande fotografia do paquete, a notícia que tinha foros de escândalo nacional.

Ri-me para dentro como o cão Mutley. Estávamos no tempo em que até o apontar para além de feio era perigoso.

Mas, quanto ao resto, tudo era calmo naquela Lisboa pacífica e provinciana, e o meio estudantil universitário ainda tinha que aguardar uns anos pelos ventos agitados de Maio de 68.

Nunca mais regressei ao “meu” Jardim do Príncipe Real onde, nas horas de lazer, me deliciava com as leituras do Pitigrilli e nas de aperto para os exames media forças com a sebenta de Princípios Gerais de Direito para tentar perceber aquelas vinte e tal páginas em que o Prof. Adriano Moreira explicava as diferenças entre Direito Público e Privado, que mais tarde, Freitas do Amaral, tornaria muito mais fácil com um terço das páginas.

Para além disto, era o retrato rotineiro dos jardins de Lisboa, com os magalas a namoriscarem as sopeiras, o fulano que vendia a banha da cobra e que, estacionado no passeio, desertava sobre as maravilhas do produto que fazia bem a tudo e tinha a ver com uma cobra que toda a gente esperava ver quando ele abrisse a mala que estava no chão, a seus pés e que afinal só guardava os frasquinhos da poção mágica que começavam a ser vendidos quando a conversa já não dava para esticar mais e o pessoal à sua volta ameaçava desertar.

E havia também um sujeito que parava muito por ali, com ares de galã dos “pampas”, morenaço, calças justas, botas à vaqueiro e andar à Yul Brynner e, ao que diziam as más-línguas, tinha uma relação pecaminosa com a mulher do Mister Cork que tinha tanto de gordo como a mulher, muito mais nova que ele, tinha de “boa”.

E finalmente havia a minha vizinha da cave e como último personagem desta história de memórias o malfadado rapaz do trompete.

 Ela era uma jovem linda como os amores, o seu rosto, o de uma boneca que me deixava fascinado como o passarinho se fascina pelo olhar da serpente.

 Não a podia ver à janela pois a cave apenas dava para um pequeno e esconso saguão mas sempre que nos cruzávamos à saída ou entrada do prédio era um encantamento para mim.

 Segui-a com o olhar e perguntava-me como é que uma rapariga tão linda podia sair daquela cave escura, húmida e mal cheirosa em vez de um palácio a que a sua beleza lhe dava direito?

Eu era um aluno universitário, coisa rara naquele tempo, ela uma pobre rapariga que nem a 4ªclasse teria e no entanto os meus olhos enchiam-se com a sua figura e eu, tímido, sentia-me como um barco à deriva aguardando a orientação de um olhar seu que nunca veio.

Nunca trocámos palavra, nem um simples bom-dia, mas ela era definitivamente a eleita do meu coração, a musa inspiradora dos meus sonhos… até que um dia despertei para a realidade ao som de um estridente, agudo e desafinado trompete desesperadamente soprado por um não menos desafinado músico… era o namorado.

Maldito, não só se tinha apropriado da minha secreta namoradinha como, ainda por cima, fazia-se anunciar junto dela com aquele maldito trompete!

Que desperdício, junto de uma rapariga tão linda tocava-me trompete… raios o partam, como eu o invejei!


PS

A esta distância, as paixões da juventude, tal como as cartas de amor de Fernando Pessoa, parecem-nos ridículas. Em boa verdade, aos 19 anos, eu estava "descomandado" e ter-me-ia apaixonado perdidamente por qualquer linda jovem que ousasse levantar certos olhares para mim. O que eu não sabia e vim a perceber mais tarde, é que me limitava a cumprir instruções da “mãe natureza” que em código cifrado exigia que transmitisse os meus genes à fêmea mais bonita da minha tribo para que os meus filhos também nascessem lindos e tivessem, por isso, mais oportunidades de continuarem os meus genes pelas gerações seguintes.

 A beleza, entre nós, representa um trunfo para a procriação, isto antes de se inventarem as contas bancárias...

Já lá dizia o Vinicius de Morais, “… que me perdoem as feias mas eu prefiro as lindas”… E é assim, simples coisas da biologia transformadas em lindos romances de amor, pois não me consta que a Dulcineia do D. Quixote ou a Julieta do Romeu, fossem vesgas ou tivessem borbulhas na testa.

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