Os dois coronéis tornaram-se inimigos jurados. |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 2
2
Cavalgaram em silêncio até à entrada do
pontilhão quando Natário, na vanguarda da escolta que fora buscar o Coronel no
arraial de Taquaras, estação da Estrada de Ferro, retardou o passo da mula,
colocou-se a par com o patrão, falou com voz mansa:
- Conheço um lugar muito conveniente,
Coronel. Posso mostrar, se vosmicê qui ser
fazer um desvio, coisa de meia légua. Fica pouqui nho
mais adiante, subindo o rio.
Lugar conveniente? Conveniente, para
quê? A informação
do mameluco chegava tão a propósito que
o coronel Boaventura Andrade sobressaltou-se. Dona Ernestina, sua santa esposa,
entendida em espiritismo, afirmava que algumas pessoas tinham o dom de ler o
pensamento dos outros.
Em companhia do filho, Venturinha, estudante
de Direito, o fazendeiro assistira num teatro da Capital a um espectáculo de
prestidigitação e telepatia, ficara de boca aberta, bestificado com o tal de faqui r e com a mulher dele, uma louraça que merecia
macho mais raçudo do que aquele magricela de barbicha espetada.
Magricela, as faces cavadas, a tez de cera,
ruim de carcaça mas um retado na adivinhação, lia os pensamentos ocultos nas
cabeças alheias como se os lesse escritos numa folha de papel.
Venturinha, pernóstico aprendiz de
bacharel, garantiu que tudo aqui lo
não passava de truque mas não conseguiu provar, fornecer explicação
convincente.
O Coronel preferia não aprofundar essas
incógnitas: de valentia quase legendária, nada nesse mundo o assustava; sentia porém
um temor incontrolável ante as forças do sobrenatural.
De um lugar conveniente estava
precisado, como pudera Natário adivinhar?
Fitou o rosto do capataz, numa
interrogação. Natário esboçou
um sorriso. Face larga de índio, cabelos
negros, escorridos,
maçãs do rosto salientes, olhos miúdos e
argutos. Ostentava
o título de capataz e se bem exercesse o
cargo a contento, responsável pelo trabalho nas roças de cacau, nos últimos
tempos se ocupara sobretudo com a briga, entrevero mortal, que dividia os
poderosos senhores.
Tinha experiência, adqui rida em situações anteriores, sempre a serviço do
coronel Boaventura. De jovem fugitivo da justiça, Natário ascendera àquelas
alturas: capanga, capataz, chefe de jagunços, homem de confiança, pau para toda
obra. Pesava os fatos, tirava conclusões.
Atento às conveniências, o Coronel evitava
falar em luta
armada, referir-se a tiroteios, tocaias,
encontros sangrentos com mortos e feridos. Por mais renhida fosse a desavença,
para designá-la utilizava palavra que lhe parecia mais civilizada, menos violenta:
política.
— A política está fervendo, seu Natário,
temos de tomar
providências senão acabam com a gente,
política mais perigosa!
Pouco mais adiantara na conversa mantida
com o capataz,
uma semana antes, na varanda da
casa-grande da Fazenda da
Atalaia, comentando as comprovadas
notícias sobre os preparativos do coronel Elias Daltro, chefe político, senhor
da Fazenda Cascavel, cujas plantações de cacau faziam divisa com as da Atalaia.
Amigos e correligionários, os dois
coronéis tornaram-se
inimigos jurados cada qual se considerando dono exclusivo daquela imensidão
de terra devoluta, de mata cerrada, que se estendia da boca do sertão às
margens do rio das Cobras.
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