quarta-feira, julho 16, 2014

Os dois coronéis tornaram-se inimigos jurados.
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 2

















2

Cavalgaram em silêncio até à entrada do pontilhão quando Natário, na vanguarda da escolta que fora buscar o Coronel no arraial de Taquaras, estação da Estrada de Ferro, retardou o passo da mula, colocou-se a par com o patrão, falou com voz mansa:

- Conheço um lugar muito conveniente, Coronel. Posso mostrar, se vosmicê quiser fazer um desvio, coisa de meia légua. Fica pouquinho mais adiante, subindo o rio.

Lugar conveniente? Conveniente, para quê? A informação
do mameluco chegava tão a propósito que o coronel Boaventura Andrade sobressaltou-se. Dona Ernestina, sua santa esposa, entendida em espiritismo, afirmava que algumas pessoas tinham o dom de ler o pensamento dos outros.

 Em companhia do filho, Venturinha, estudante de Direito, o fazendeiro assistira num teatro da Capital a um espectáculo de prestidigitação e telepatia, ficara de boca aberta, bestificado com o tal de faquir e com a mulher dele, uma louraça que merecia macho mais raçudo do que aquele magricela de barbicha espetada.

 Magricela, as faces cavadas, a tez de cera, ruim de carcaça mas um retado na adivinhação, lia os pensamentos ocultos nas cabeças alheias como se os lesse escritos numa folha de papel.

Venturinha, pernóstico aprendiz de bacharel, garantiu que tudo aquilo não passava de truque mas não conseguiu provar, fornecer explicação convincente.

O Coronel preferia não aprofundar essas incógnitas: de valentia quase legendária, nada nesse mundo o assustava; sentia porém um temor incontrolável ante as forças do sobrenatural.

De um lugar conveniente estava precisado, como pudera Natário adivinhar?

Fitou o rosto do capataz, numa interrogação. Natário esboçou
um sorriso. Face larga de índio, cabelos negros, escorridos,
maçãs do rosto salientes, olhos miúdos e argutos. Ostentava
o título de capataz e se bem exercesse o cargo a contento, responsável pelo trabalho nas roças de cacau, nos últimos tempos se ocupara sobretudo com a briga, entrevero mortal, que dividia os poderosos senhores.

Tinha experiência, adquirida em situações anteriores, sempre a serviço do coronel Boaventura. De jovem fugitivo da justiça, Natário ascendera àquelas alturas: capanga, capataz, chefe de jagunços, homem de confiança, pau para toda obra. Pesava os fatos, tirava conclusões.

Atento às conveniências, o Coronel evitava falar em luta
armada, referir-se a tiroteios, tocaias, encontros sangrentos com mortos e feridos. Por mais renhida fosse a desavença, para designá-la utilizava palavra que lhe parecia mais civilizada, menos violenta: política.

— A política está fervendo, seu Natário, temos de tomar
providências senão acabam com a gente, política mais perigosa!

Pouco mais adiantara na conversa mantida com o capataz,
uma semana antes, na varanda da casa-grande da Fazenda da
Atalaia, comentando as comprovadas notícias sobre os preparativos do coronel Elias Daltro, chefe político, senhor da Fazenda Cascavel, cujas plantações de cacau faziam divisa com as da Atalaia.

Amigos e correligionários, os dois coronéis tornaram-se
inimigos jurados cada qual se considerando dono exclusivo daquela imensidão de terra devoluta, de mata cerrada, que se estendia da boca do sertão às margens do rio das Cobras.

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