terça-feira, julho 01, 2014

Selaram assim o seu noivado naquela hora no silêncio da igreja.
OS VELHOS
MARINHEIROS

(Jorge Amado)

Episódio Nº 120










Do navio para a terra, riram muito. Os remos salpicavam água nos passageiros, e a grande baqueana, para evitar os pingos, apertava-se contra o comandante.

Foram ver a cidade, depois a Praia de Iracema. Ali, Clotilde comprara rendas para “umas camisas novas de dormir”, como explicou, escondendo, envergonhada, o rosto com o xale.

Fazendo com que Vasco, numa súbita explosão de desejo - via a outra Clô, os seios saltando da rendada camisa - a beijasse desatinado diante dos pescadores e rendeiras.

Ao voltar ao centro, ela quis rezar numa igreja. A contrita cabeça debruçada, orava a grande baqueana. Aproveitou-se o comandante para desaparecer. Quando, terminada a prece, o procurou e não encontrou sequer seu rastro, sentiu o coração parar.

Lágrimas vieram-lhe aos olhos, enquanto, em crescente inquietação, buscava-o pelas redondezas. Finalmente avistou-o, vinha apressado.

Sua voz saiu ríspida:

- Onde foi? Me largou aqui. . .

Mas ele segurou-lhe o braço, fê-la voltar à nave deserta, andou até a claridade de um vitral, tirou do bolso a caixinha com as duas alianças recém-compradas.

 Selaram assim o seu noivado naquela hora no silêncio da igreja. Mas só a beijou lá fora, no templo ela não consentira, acusando-o de ateu e herege. Ele era apenas feliz, o comandante.

No penúltimo dia de viagem - a chegada a Belém estava marcada para o dia seguinte, às três horas da tarde, e lá o Ita dormiria, iniciando a travessia de volta somente no fim da tarde do outro dia - um capricho da grande baqueana causou rebuliço e confusão a bordo.

Clotilde anunciou seu desejo de ver o navio por dentro, descer à casa das máquinas, aos porões, conhecer-lhe as entranhas. Não haviam sido os navios o lar de Vasco durante quarenta anos?

Era romântico e compreensível anseio, natural numa noiva, desejosa de apossar-se ao máximo de tudo quanto dizia respeito ao futuro marido. Assim lhe confessou e, num beijo, ele prometeu.

Era evidente: estava o comandante perturbado pela paixão, a ponto de esquecer-se das dificuldades da empresa. Não devido aos cartazes em escondidas portas, notificando, “ser proibida a entrada”.

Isso não se referia, é claro, ao comandante e a convidado seu. Mas, como não pensara ele, velho marinheiro, nas escadas perigosas, na sumária tanga dos foguistas?

 Assim, vinte e quatro horas antes da escala final, tomou da bem-amada pela mão, e dirigiu-se para o ventre do navio. Abriu pequena porta proibida, era o abismo ao fundo, e aquela escada de ferro, estreita e vertical, a pique sobre o abismo.

Clô soltou um gritinho: ai!, mas ele iniciara a descida, estendia-lhe a mão. Como não se despenharam os dois, eis um mistério a provar mais uma vez a existência de um deus dos amorosos.

O chefe das máquinas escancarou a boca, deu breves explicações.

Houve um rebuliço na fornalha: carvoeiros e foguistas, praticamente nus, afobaram-se ao ver aquela dama de súbito diante deles. O segundo-maquinista botou as mãos na cabeça.

 Clotilde, no cúmulo da excitação, quis atirar uma pá de carvão na fornalha rubra. Estava afogueada pelo calor. O comandante ajudou-a, dizendo-lhe recordar assim seus tempos de grumete, quando vinha, por vezes, trabalhar com os foguistas.

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