segunda-feira, agosto 18, 2014

O Barão era deveras autoridade em raças...
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 30


















Em sendo assim, uma esposa devotada deve estar apta a cumprir o seu dever, solidária com o destino do marido. Um dia, quando dissertavam, sobre a pureza e a beleza das raças equinas e similares, andando pelos arredores do banguê, o Barão Adroaldo apontara um negro adolescente, envolto em fagulhas, na oficina do ferreiro, chamando a atenção de Madame la Baronne para aquele magnífico espécime de animal de raça:

 - Repare no torso, nas pernas, nos bíceps, na cabeça, ma chère: um belo animal. Exemplar perfeito. Observe os dentes.

Reparou, obediente e interessada. Demorou os olhos molhados no exemplar perfeito, no belo animal. Observou os dentes brancos, o sorriso vadio. Malheur! Uma faixa de pano escondia-lhe a primazia.

O Barão era deveras autoridade em raças, herdara a competência do pai, perito na escolha e compra de cavalos e escravos.

Mas Marie-Claude aprendera com as freiras do Sacré Coeur que os negros também têm alma, adquirem-na com o baptismo.

 Alma colonial, de segunda classe, mas suficiente para distingui-los dos animais: a bondade de Deus é infinita, explicava Sóror Dominique dissertando sobre o heroísmo dos missionários no coração da África selvagem.

 - Mais, pas du tout, mon ami, ce n’est pas un animal. C’est un homme, il possêde un’ãme immortelle que te missionaire tal a donné avec le baptême.

— Un homme? — O Barão desatou a rir.

Quando o Senhor de Itauaçu ria em francês, posando de aristocrata culto e irónico a se divertir com a tolice humana, tornava-se intolerável por afectado e arrogante.

 Um seu xará, Adroaldo Ribeiro da Costa, bacharel e literato de Santo Amaro, ao ouvi-lo rinchavelhar massacrando sem piedade a língua de Beaudelaire, mestre bem-amado, passara a designá-lo por Monsieur le Franciú para gáudio dos ouvintes e pelas costas do Barão: o poeta vivia na lua mas não a ponto de se expor às iras do manda-chuva.

 - Não me leveis a mal, ma chêre, mas vossa afirmação é uma estultice. Onde já se viu dizer que um negro é um homem?

Um belo animal, repito, com certeza menos inteligente do que
vosso cavalo Diamante Azul.

 - Três beau, oui. Un homme três beau, un prince. Un prince
d’ébêne!

 - Príncipe de Ébano! Vous êtes drôle, Madame. Deixai-me rir. 

 -  E rinchavelhou superior e absoluto.

A troça grosseira, a empáfia, le ricanement sardonique do Barão acabaram de convencê-la: destino é destino, traçado no céu.

A Baronesa adoptou Castor e não se arrependeu. Se o senhor de engenho se deu conta do interesse que ditou a mudança de estado do aprendiz de ferreiro, agora a lhe servir à mesa, fez vista grossa, ele próprio ocupado em derrubar cabrochas do banguê, delas usando e abusando como se ainda perdurasse a escravidão.

Senhor feudal, de muitas comeu os três vinténs mas somente com Rufina manteve relacionamento prolongado; na cozinha da casa-grande ela se dava ares de sinhá, comborça – amásia de homem casado -  coberta de ouro e prata - balangandãs, pulseiras, brincos, colares, trancelins, além da cruz de madrepérola que lhe dera o reverendíssimo Cónego.

 A generosidade do Barão não conhecia limites: como se não bastassem os regalos valiosos, teimava em instruir a mulata na prática de refinamentos das estranjas, sem sucesso pois ela preferia a brincadeira ao natural: a gula insaciável dispensava molhos e temperos.

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