sábado, agosto 02, 2014

O rio das Cobras
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 17
















- Não recusava cachaça mas no cabaré bebia vermute misturado com conhaque.

Nas casas-grandes, os coronéis, podres de ricos, nem por isso
reclamavam menos:

 - Turco, tu tá roubando demais. Onde já se viu um patacão
vagabundo, de níquel — que isso nunca foi prata —, custar essa dinheirama toda? É um assalto à mão armada, assim não há cacau que chegue...

Fadul jurava que em Ilhéus um relógio daquela qualidade,
prata de lei, custava o dobro.

 A mala aberta sob os olhos cúpidos das patroas, mantinha-se atento ao movimento da cozinha de onde chegava o odor dos escaldados, o sublime aroma da feijoada - para ele não havia prato que se pudesse comparar à feijoada: o toucinho farto, as carnes de salpresa (levemente salgadas) e de fumeiro, paios e linguiças; em matéria de apetite, saíra ao tio padre.


Um bom sujeito, prestativo. Bom inclusive para adjutorar (ajudar) moribundo, facilitando-lhe a passagem desta para melhor, depressa e em paz.

Em ocasiões assim penosas era de grande ajuda: não havia apego à vida por mais ferrenho que resistisse ao vozeirão e à pronúncia de Fadul. Aquele fúnebre cantochão arrancava lágrimas a jagunços desalmados.

Nas brenhas do cacau, quem quisesse juntar dinheiro sem possuir roça plantada em terra própria tinha de multiplicar suas aptidões. Vendedor ambulante, carregando a loja ao lombo, o Turco Fadul exercia a medicina com frequência, o sacerdócio quando necessário. Operava abscessos, retirava carnegões; limpava feridas com água oxigenada, queimava-as com iodo.

 Na mala, quatro remédios infalíveis: Maravilha Curativa, Saúde da Mulher, Pomada de São Lázaro e óleo de rícino.

Com eles, tratava qualquer doença — excepto a bexiga negra e a febre maldita, para essas não havia jeito a dar. Atendeu e curou muito povo naquele sertão sem médico nem farmácias, sem nenhum socorro.

Sacristão na aldeia libanesa, acolitando padre Said nos misteres do culto, não vacilava em baptizar crianças que sem sua ajuda morreriam pagãs, sem direito ao reino dos céus.

Abençoou casais amancebados, retirando-os do pecado em que viviam, concedendo-lhes nova condição social e pretexto para uma folgança com cachaça e arrasta-pé.

 Seu Fadu apreciava um bate-coxas puxado a sanfona; par de primeira na opinião das moças.

De posse da arma, Fadul Abdala decidiu ampliar a área de
suas actividades, passando a emprestar dinheiro a juros.

Fazia-o com prudência, escolhendo a quem confiar seu módico capital, seu rico dinheirinho; com prazos estritos para pagamento e complicada tabela de ágios.

 Visível sob a aba do paletó, o pau-defogo. Oferta, sabiam todos, do capitão Natário, prova de amizade.

Com a agiotagem, fez crescer o pé-de-meia e viu aproximar-se
a hora de arriar para sempre a mala de mascate, erguer uma biboca onde vender de um tudo.

 Faltava-lhe apenas escolher o lugar de mais futuro, povoado recente onde ainda não existisse concorrência.

Ao descrever a paragem onde se perdera e repousara, soube que o nome daquele sitio era Tocaia Grande, assim denominado por ter sido cenário de tenebrosa emboscada seguida de matança a sangue-frio alguns anos antes nas desapiedadas brigas dos coronéis pela posse das derradeiras matas — naquelas bandas do rio das Cobras já não existia palmo de terra que não tivesse dono.

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