Muito
Necessária?
A propósito da história do Urso de
Peluche chamado Brinker...
Será que a religião preenche uma
lacuna muito necessária?
Diz-se frequentemente existir no
cérebro uma lacuna que tem a forma de Deus e que é preciso preencher: temos uma
necessidade psicológica de Deus – amigo imaginário, pai, big brother,
confessor, confidente – e a necessidade tem de ser satisfeita quer Deus exista
de facto, quer não.
Mas não será que Deus vem atravancar
um espaço que melhor seria que preenchêssemos com outra coisa? Talvez a
ciência? A arte? A amizade humana? O humanismo? O amor por esta vida, vivida no
mundo concreto, sem dar crédito a eventuais vidas para além da morte? Um amor
pela natureza – aqui lo a que o
grande entomólogo E.O. Wilson chamou Biofilia?
Já se apontaram à religião quatro
grandes funções na vida humana: explicação, exortação, consolo e inspiração.
- Historicamente, a religião aspirou a
explicar a nossa existência e a natureza do universo em que nos inserimos.
Nesta função ela foi, entretanto, completamente ultrapassada pela ciência.
- Por exortação pretendo dizer a
orientação moral sobre o modo como nos devemos comportar.
- Quanto ao consolo e inspiração
abordaremos de seguida mas, à laia de preâmbulo, começaremos com o fenómeno do
«amigo imaginário» da nossa infância que julgo ter semelhanças com a crença
religiosa.
Será o fenómeno do amigo imaginário
uma ilusão de tipo superior, numa categoria diferente do comum faz-de-conta da
infância?
Suspeito que o fenómeno do Binker da
infância pode ser um bom modelo para compreender a crença teísta dos adultos.
Não sei se os psicólogos já estudaram a questão deste ponto de vista mas seria
digna de investigação.
Companheiro e confidente, um Binker
para a vida: esse é, seguramente, um papel que Deus desempenha – uma lacuna que
perduraria se Deus desaparecesse.
Outra criança, uma menina, tinha um
“homenzinho púrpura” que lhe parecia uma presença real e visível e que se
materializava no ar com uma cintilação e um suave tinido.
Visitava-a com regularidade, especialmente
quando se sentia sozinha, mas com menor frequência à medida que ela foi
crescendo.
Um certo dia, mesmo antes de ir para
a escola, o “homenzinho púrpura” apareceu-lhe, anunciado pelo habitual tinir
das campainhas, para lhe dizer que não voltaria a visitá-la.
Isto entristeceu a menina, mas o
homenzinho púrpura disse-lhe que ela estava a crescer e que no futuro não iria
precisar mais dele. Agora tinha de deixá-la para poder ir cuidar de outras
crianças. Prometeu-lhe, no entanto, que voltaria se ela precisasse dele a
sério.
Voltou, de facto, muitos anos mais
tarde, num sonho, numa altura em que ela estava a atravessar uma crise pessoal
e a tentar decidir o que fazer à vida.
A porta do quarto abriu-se e apareceu
uma carrada de livros, empurrada, quarto dentro… pelo “homenzinho de púrpura”.
Ela interpretou isto como sendo um
conselho no sentido de ir para a universidade – conselho que ela seguiu e mais
tarde considerou bom.
É uma história enternecedora que
consegue, melhor do que qualquer outro exemplo, acercar-nos da compreensão do
papel consolador e aconselhador que os deuses imaginários têm na vida das
pessoas.
Um ser pode existir apenas na
imaginação e, ainda assim, parecer completamente real à criança, dando-lhe
verdadeiro consolo e bons conselhos.
Mas melhor ainda, os
amigos – e os deuses imaginários - têm tempo e paciência para dedicar toda a
atenção a quem sofre. E são muito mais baratos do que os psiqui atras ou os conselheiros profissionais.
Terão os deuses, nesse seu papel de
consoladores e conselheiros evoluído a partir de Binkers por meio de uma
espécie de “pedomorfose” psicológica.
A “pedomorfose” é a manutenção na
idade adulta, de características da infância.
Terão as religiões, originariamente
evoluído, ao longo de gerações, através de um adiamento gradual do momento da
vida em que as crianças põem de parte os “Binkers” – do mesmo modo que fomos
abrandando, ao longo da evolução, o achatamento da testa e a protrusão
(projecção para a frente) dos maxilares?
Para completar o quadro, consideremos
a possibilidade inversa. Em vez de serem os deuses a evoluir a partir de
Brinkers ancestrais, será possível os Brinkers terem evoluído de deuses
antigos?
Esta ideia parece menos provável.
O psicólogo norte-americano Julien
Jaynes observou que muitas pessoas têm a percepção que os seus próprios
processos de pensamento são como uma espécie de diálogo entre o “eu” e outro
protagonista interno, situado dentro da cabeça.
Hoje em dia compreendemos que ambas as
vozes são nossas e senão o compreendermos somos tratados como doentes mentais.
Foi o que aconteceu, durante um breve
período, com Evelyn Waugh, escritor inglês de personalidade difícil.
Sem papas na língua, como era seu
timbre, comentou com um amigo: «Não te vejo há muito tempo, mas também tenho
visto tão pouca gente porque – não sei se sabias – enlouqueci.»
Depois de recuperar, Evelyn escreveu
um romance, “As Desventuras do Senhor Pinfold”, em que descreve o seu período
alucinatório e as vozes que então ouvia.
O que Jaynes sugere é que antes do
ano 1.000 A .C.
a generalidade das pessoas desconhecia que a segunda voz – a que o Sr. Pinfold
ouvia – vinha de dentro de si.
Julgavam-na a voz de um deus.
Jaynes vai mesmo ao ponto de
localizar a “voz dos deuses no hemisfério do cérebro oposto ao que controla a
linguagem.
Terá sido o momento em que as pessoas
se deram conta de que as vozes exteriores que lhes parecia ouvir vinham,
efectivamente, de dentro de si mesmas.
Jaynes considera esta transição
histórica como o alvor da consciência humana.
Os deuses seriam, então, vozes
alucinadas que falavam dentro das cabeças das pessoas.
Assim, e numa espécie de inversão da
hipótese da pedomorfose, os deuses alucinados começaram, primeiro, por
desaparecer das mentes adultas e foram, depois, puxados para trás, para fases
cada vez mais recuadas da infância, até às suas actuais sobrevivências sob a
forma de fenómenos como o Binker ou o “homenzinho púrpura”. O problema desta
versão é que não explica a persistência dos deuses, hoje, na idade adulta.
Talvez seja melhor não tratar os
deuses como antepassados dos Brinkers ou vice-versa, mas antes encarar ambos
como sub-produtos da mesma predisposição psicológica que têm em comum o poder
de confortar.
Richard Dawkins
( Prémio Nobel em 1973 pelos seus estudos em Etologia)
Nota – Michael Shermer,
psicólogo americano que há vários anos se dedica a uma cruzada em defesa do
pensamento científico contra as superstições, diz o seguinte:
- “Haverá alguma coisa que
nos toque mais a alma do que espreitar uma galáxia distante por um telescópio
de 100 polegadas ,
segurar na mão um fóssil com 100 milhões de anos ou um utensílio de pedra com
500.000 anos, contemplar de pé o imenso abismo de espaço e tempo que é o grande
Canyon, ou escutar um cientista que olhou cara a cara a criação do universo e
não pestanejou? É isso a profunda e sagrada ciência.”
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