Fadul reconheceu os violinos |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 62
De Pergentino, Maninho sabia pouco, mas sendo homem do coronel Boaventura devia ser brioso e prudente ao mesmo tempo, na medida do capitão Natário da Fonseca.
Medo lhe fazia Dorindo por calado e ofendido;
o que têm de inofensivos os cornos mansos, sujeitos desprezíveis mas isentos de
maldade, têm de perigosos, de imprevisíveis, aqueles inconformados que se recusam
a carregar os chifres reais ou imaginários.
Comem-se
por dentro e quando explodem não há quem os contenha em sua fúria.
Cruzando o rio sobre as pedras
escorregadias, Maninho sustinha o cambaleante Valério Cachorrão, mas se
preocupava sobretudo com Dorindo.
Desembocaram no cerrado por detrás das
carroças e assim ficaram impedidos de ver o que se estava se passando.
Ouviram, porém, um som de tal maneira
inusitado que nem o próprio Maninho pudera classificá-lo, quanto mais os
outros,
O som cresceu e se elevou, melodioso:
era música, sim senhor, mas não de harmónica, violão ou cavaqui nho. Música de igreja não seria tampouco pois,
apesar de tocante e linda, nada tinha de solene, era branda e vibrante, alegre
e melancólica, tudo de vez e ao mesmo tempo, e dava vontade de dançar.
Maninho jamais escutara coisa tão bonita e
comovente em toda a sua longa vida. Não tinha idéia de quantos anos carregava
no lombo, da idade exacta, mas a carapinha começara a embranquecer.
Os quatro homens vindos do armado, três
deles dispostos à vingança e à punição, a recuperar bens preciosos, moedas e
mulheres, a expulsar os ciganos na compulsão das armas, sustiveram a marcha
quando a melodia subiu até às estrelas e se espalhou na mata.
Também os animais, onças, serpentes,
grilos e corujas, pararam para ouvir. Maninho compreendeu então por que os sapos
de ouvido fino, haviam suspendido o canto.
Para avançar, os valentões diminuíram o
passo, cautelosos; transpuseram as carroças e enxergaram a cena singular.
Ali estavam, plantadas, as desaparecidas
raparigas, todas as oito, umas sentadas, outras de pé. Dois dos forasteiros - um era Maurício, o outro era Miguel - empunhavam
instrumentos dantes nunca vistos naquelas paragens, e tocavam para a plateia de
putas e ciganos.
Maria Gina chorando e rindo, José,
brincos nas orelhas, anéis nos dedos, Bernarda próxima à avó das bruxas que lhe
dissera a sina, Malena amamentando uma criança, Alberto amparando-a com o
braço, todos os demais, velhos, moços e meninos.
Num silêncio de pedra, a corte real da
Babilónia e a lua cheia.
Quem não diminuiu o passo foi Fadul
Abdala que chegava acompanhado de Dudu Tramela: o moleque queria ver para
contar.
O turco vinha correndo, para alcançar a
tempo os baderneiros.
Ao rumor dos gravetos partidos,
desencostou-se de um pé de pau o vulto magro de Coroca. Encarou o grupo e,
severa, colocou um dedo sobre os lábios exigindo silêncio: foi obedecida.
Fadul reconheceu os violinos.
Caindo de bêbado, Valério Cachorrão deu
um passo à frente, fez um gesto com o braço para que os outros o acompanhassem,
não adiantou.
Ainda tentou empunhar a garrucha, porém
Maninho tomou-lhe a arma, sem maior esforço. Também Dorindo, ao perceber
Guta sentada no chão, escutando
embevecida, qui s gritar-lhe o nome,
xingar-lhe a mãe, chegou a abrir a boca mas o turco a tapou com a mão disforme.
Coisas do Cão, o pardo Pergentino fez o
sinal-da-cruz. E nada além disso aconteceu.
Josef
veio de trás e se juntou a Mauricio e a Miguel: não parecia um rei, parecia um
deus da mata virgem. Acrescentou ao dulcíssimo som dos violinos o divino
mistério da flauta de Pan no concerto das czardas naquela noite dos
ciganos em Tocaia
Grande.
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