Uma calamidade, o fim do mundo |
TOCAIA
GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 57
Talvez nada houvesse sucedido, se é que
sucedeu algo digno de registo, Valério Cachorrão não teria levado avante indignadas
ameaças, não fosse a aparição no descampado do tropeiro Dorindo. Vinha da venda de
Fadul, espumando raiva.
Somaram-se indignação e raiva:
solidários, Cachorrão e Dorindo sentiram-se vítimas de idênticos malefícios
engendrados pela mesma raça excomungada dos ciganos.
Tudo se completou quando o pardo
Pergentino, apoiado no testemunho do alugado e dos três mateiros, anunciou o
êxodo das raparigas, de todas elas: não se encontrava uma única nos limites do
arruado para
atender tropeiros e passantes, por mais que se buscasse.
Uma calamidade, o fim do mundo.
Valério Cachorrão tentava afogar em
cachaça a indelével sensação da unha da cigana riscando-lhe os ovos. Riscara-lhe
a raia da mão e não os ovos mas a carícia alojara-se no escuro saco do ajudante
de tropeiro; o calor da aguardente não conseguia apagar a cócega leve, aquele
frio na raiz dos qui bas.
A puta da cigana o enfeitiçara, fizera
dele gato e sapato para depois ganhar e mundo levando o dinheiro que Cachorrão
reservara para pagar a noite da negra Flaviana na pensão de Lídia, em Itabuna.
Precisava encontrar a tinhosa, estivesse ela
onde estivesse, para reaver as moedas preciosas e lhe ensinar que com homem
macho não se brinca nem dele se abusa.
Que gosto teria o xibiu de uma cigana? Um gole atrás do outro, o arranhar da
unha nas profundas dos colhões.
As razões de Dorindo eram diversas mas
tinham de comum com as de Valério a presença dos ciganos em Tocaia Grande.
Também Dorindo pensara libertar-se da
insuportável dor-de-cotovelo empunhando a garrafa no armazém do turco, onde
soubera do encantamento, e depois na companhia dos tropeiros: a cara amarrada,
a boca trancada, sem conversa.
Cachorrão alardeava pragas e valentias,
Dorindo remofa, calado, sua amofinação.
Por ele já falara, no armazém e no
galpão, exagerando as amarguras de seu principal, o ajudante Dudu Tramela que presenciara
a bruxaria.
Após ouvir em silêncio, como de costume,
a narrativa do moleque, Maninho discordara de um ponto da questão, a seu ver fundamental.
Segundo ele, Dorindo não tinha por que
considera-se corno, traído e humilhado. Maninho sabia da vida e de seus percalços,
pessoa de opinião e de princípios.
É público e notório que a delicada flor
do bem-querer não desabrocha nem resplandece se não houver interesse e
concordância de ambas as partes, do homem e da mulher.
Não adianta um dos dois se enrabichar
sozinho: se não for correspondido, fica no alvéu, roendo beira de sino,
situação penosa e deprimente, bastante triste.
Acontece amiúde, com o próprio Maninho
acontecera: embeiçado pelos cabelos vermelhos de Zulmira Fogaréu, ela lhe dera
as costas, não qui s saber nem ouvir
falar. Ainda por cima o outro era um nanico, um meia-porção: parece impossível
mas foi assim.
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