segunda-feira, setembro 22, 2014

Uma calamidade, o fim do mundo
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 57



















Talvez nada houvesse sucedido, se é que sucedeu algo digno de registo, Valério Cachorrão não teria levado avante indignadas ameaças, não fosse a aparição no descampado do tropeiro Dorindo. Vinha da venda de Fadul, espumando raiva.

Somaram-se indignação e raiva: solidários, Cachorrão e Dorindo sentiram-se vítimas de idênticos malefícios engendrados pela mesma raça excomungada dos ciganos.

Tudo se completou quando o pardo Pergentino, apoiado no testemunho do alugado e dos três mateiros, anunciou o êxodo das raparigas, de todas elas: não se encontrava uma única nos limites do arruado para atender tropeiros e passantes, por mais que se buscasse.

Uma calamidade, o fim do mundo.

Valério Cachorrão tentava afogar em cachaça a indelével sensação da unha da cigana riscando-lhe os ovos. Riscara-lhe a raia da mão e não os ovos mas a carícia alojara-se no escuro saco do ajudante de tropeiro; o calor da aguardente não conseguia apagar a cócega leve, aquele frio na raiz dos quibas.

A puta da cigana o enfeitiçara, fizera dele gato e sapato para depois ganhar e mundo levando o dinheiro que Cachorrão reservara para pagar a noite da negra Flaviana na pensão de Lídia, em Itabuna.

Precisava encontrar a tinhosa, estivesse ela onde estivesse, para reaver as moedas preciosas e lhe ensinar que com homem macho não se brinca nem dele se abusa.

Que gosto teria o xibiu de uma cigana? Um gole atrás do outro, o arranhar da unha nas profundas dos colhões.

As razões de Dorindo eram diversas mas tinham de comum com as de Valério a presença dos ciganos em Tocaia Grande.

Também Dorindo pensara libertar-se da insuportável dor-de-cotovelo empunhando a garrafa no armazém do turco, onde soubera do encantamento, e depois na companhia dos tropeiros: a cara amarrada, a boca trancada, sem conversa.

Cachorrão alardeava pragas e valentias, Dorindo remofa, calado, sua amofinação.

Por ele já falara, no armazém e no galpão, exagerando as amarguras de seu principal, o ajudante Dudu Tramela que presenciara a bruxaria.

Após ouvir em silêncio, como de costume, a narrativa do moleque, Maninho discordara de um ponto da questão, a seu ver fundamental.

Segundo ele, Dorindo não tinha por que considera-se corno, traído e humilhado. Maninho sabia da vida e de seus percalços, pessoa de opinião e de princípios.

É público e notório que a delicada flor do bem-querer não desabrocha nem resplandece se não houver interesse e concordância de ambas as partes, do homem e da mulher.

Não adianta um dos dois se enrabichar sozinho: se não for correspondido, fica no alvéu, roendo beira de sino, situação penosa e deprimente, bastante triste.

Acontece amiúde, com o próprio Maninho acontecera: embeiçado pelos cabelos vermelhos de Zulmira Fogaréu, ela lhe dera as costas, não quis saber nem ouvir falar. Ainda por cima o outro era um nanico, um meia-porção: parece impossível mas foi assim.


Site Meter