segunda-feira, outubro 27, 2014

Era o cão em figura de gente
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 82



















De tais desleixos resultavam casamentos infelizes: esposas em pranto, lares desfeitos, heranças malbaratadas, fortunas dilapidadas!

Jamil Skaf, com empenho e diligência, buscando o melhor no reino do cacau, foi localizar Fadul Abdala nos confins do mundo.

Fadul ficou de pensar, na próxima vinda a Ilhéus responderia.

Desde logo, porém, agradeceu a honra e a confiança.

6

Na manhã seguinte, ao dirigir-se para a estação onde tomaria o trem, Fadul Abdala, por acaso ou de propósito, percorreu inesperado itinerário que o levou a passar ao sopé da Ladeira da Conquista.

No alto da Conquista, o Colégio Nossa Senhora da Piedade, das freiras ursulinas, formava professoras primárias, fornecendo título e diploma a todas as moças ricas de Ilhéus e da região cacaueira que ali estudavam em regime de internato ou de externato.

De manhã e de tarde as externas subiam e desciam a ladeira em estouvado alvoroço juvenil. Em baixo, circulavam pretendentes, indóceis gabirus.

Ao vê-lo segurando a mala, o ar inconfundível de mascate, a mão no chapéu para cumprimentá-la, Aruza deixou escapar um pequeno grito - podia ser de desespero ou de alvoroço  - e o apontou à colega que não era outra senão Beinha, vizinha e confidente.

Vinham falando sobre ele. Fadul prosseguiu no caminho da estação, levando nos olhos a visão da moça vestida com o uniforme azul e branco.

Na hora do recreio, no recanto favorito sob as mangueiras, Aruza lavou-se em pranto. Beinha não via jeito a dar mas Auta Rosa, aluna interna, segundanista trêfega e disposta, apresentou imediatamente solução para o problema da pobre apaixonada, capaz de resgatá-la do perigo de casar-se com o noivo escolhido pelo pai.

Belinha o vira de pé na ladeira, confirmava: enorme tabaréu
mal-ajainbrado, um tabacudo, o oposto do mimoso bacharel por quem Aruza suspirava e que suspirava por Aruza.

Dar o mau passo, solução radical, se bem aprazível, e sobretudo urgente, só mesmo Auta Rosa a proporia com tamanha franqueza.

Exigia disposição e coragem: teriam de enfrentar a família e a sociedade. Auta Rosa, no dizer de madre Ana de Jesus, que lhe confiscara correspondência clandestina, era o Cão em figura de gente.

Trancada a sete chaves atrás dos altos muros do colégio, conseguia não apenas cartear-se com o namorado, o fatídico plumitivo José Júlio Calasans, mas com ele certamente se encontrava às escondidas.

Não fosse assim como poderia o redactor e tipógrafo da “Gazeta Grapiúna”, nas cartas que lhe escrevia e enviava por Belinha, fazer referências tão expressas, apaixonadas e impudicas a detalhes da anatomia da normalista, habitual e recatadamente ocultos sob a farda azul e branca?

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