Abriu a boca num urro de animal ferido |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 113
Também ele acreditava a pés juntos na
existência da burra abarrotada de moedas de ouro acumuladas pelo turco: não era
um saco, era um baú.
O
ajudante de tropeiro, bisonho nas estradas, desconhecedor do conto,
contentou-se com os salvados da fogueira. Logo se juntaram a eles, homens
vindos do barracão, mulheres chegadas do brejo.
Disputaram avidamente as sobras do saque na
moradia e no armazém e o que puderam resgatar das chamas. Assim se consumiu
parte da falada fortuna de Fadul Abdala, aquela que ele não levava em cima do
corpo, as mercadorias deixadas no cacete armado.
Pedro Cigano prosseguiu incansável noite
afora a escarafunchar mesmo depois que todos os demais se retiraram.
Sustentado por duas garrafas de cachaça
milagrosamente salvas da sanha de Manezinho, do cagaço de Chico Serra, da sede
de Janjão Fanchão e da rapinagem dos aproveitadores, cambada de mofinos.
8
A acreditar-se na versão apregoada pelo
errante Pedro Cigano a correr sete coxias, as imprecações de Fadul Abdala
estremeceram céus e terra, abalaram os quadrantes do mundo, tão terríveis foram.
Anuns e mutuns, papagaios e araras
fugiram em bandos para o mais recôndito da mata, os ouriços-cacheiros
esconderam-se nos ocos das árvores, os dorminhocos japurás acordaram em
sobressalto, os ariscos teiús enfiaram-se sob as pedras, os queixadas e os
caititus saíram em disparada, as cobras puseram-se de sobreaviso atinando os
botes para o que desse e viesse.
Potocas do conhecido garganteiro, troca-pernas
sem itinerário fixo. Feitas porém as contas, tirados os noves
fora, os relatos das demais testemunhas de vista da chegada
do turco a Tocaia Grande três dias após o assalto exibiram igualmente
dramaticidade e grandiloquência.
Viram-no fora de si esmurrar a caixa do
peito com os punhos fechados; depois em desespero, elevar as grandes mãos abertas para o alto apontando em
direcção ao desatento, ao negligente, ao omisso Deus dos maronitas a cuja
guarda entregara antes de partir a paz da casa, a segurança das mercadorias.
Abriu a boca num urro de animal ferido à
traição pelo próprio pai. Cobrou do Senhor em altos brados tê-lo abandonado na
hora mais necessitada e amarga e o fez em árabe, tornando o espectáculo ainda mais
patético.
Aliás, para falar com Deus, Fadul usava sempre
a língua materna, pois não tinha certeza de que o Todo - Poderoso conhecesse o
português.
Em português jurou vingança, juras que se
perderam vazias de sentido: onde, como e quando poderia executá-las? Nunca.
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