quarta-feira, dezembro 10, 2014

Em Tocaia Grande era um homem livre.
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 120


















A correnteza cobria e descobria os encantados; o rio levou embora o cotoco de sabão.

2

Durante o dia a pasmaceira, o tédio. Habituado à convivência e à festa, o negro Castor Abduim da Assunção, Tição de apelido, padeceu melancolia, carência e desamparo quando arriou os teréns naquela remota sesmaria para nela elevar casa de pedra e cal.

 Purgou seus pecados, se os tinha, mas não fugiu ao desafio da imensa solidão.

Decidira sozinho, responsável único, senhor de seu destino. Recorrera ao coronel Robustiano de Araújo obtendo dele empréstimo indispensável para instalar a forja, mas não lhe pedira conselho nem lhe prestara satisfação; nem a ele nem a ninguém.

Assim agia desde que escapara da morte certa ao fugir, ainda adolescente, dos canaviais de Santo Amaro. Órfão de escravos forros, destinado por capricho de gringa a bufão e a lacaio, desafiara o baraço e o cutelo, a polícia e os capoeiras, o poder do senhor de engenho, rompera as cadeias da servidão.

Ninguém mandava nele: ao castigar o Barão, extinguira o medo e a obediência.

Cabeça posta a prémio, abandonou a perene festa do Recôncavo, deixando para trás e para sempre o brilho e a ostentação do açúcar: a casa-grande, a capela, as cavalariças, o engenho, o alambique, a bagaceira.

 Não voltaria a acompanhar as procissões atrás dos andores dos santos, cada qual mais rico de ouro e prata; nos esconsos da antiga senzala, outro ogam assumiria.

O rumpi na orquestra dos atabaques para o toque do alujá em honra de Xangô nas noites dos orixás, cada qual mais imponente com os eirus, os xaxarás, os abebês.

Voltara as costas às sinhás e às mucamas, aos requintes adulterinos das fidalgas, ao esplendor das mulatas perfumadas de alfazema. Abandonara para sempre e nunca mais os luxos de Oropa, França e Bahia, os canaviais, os batelões nas águas do Paraguaçu, a civilização dos senhores açúcar assentada no lombo dos escravos.

Saudades somente de seu tio Cristóvão Abduim, ferreiro exímio que lhe ensinara o oficio, alabê incomparável da orquestra no chamado do adarrum, que o iniciara no toque dos atabaques.

O Recôncavo era uma festa só, mas Tição não sentia falta da festa do Recôncavo. Contentava-se com o diminuto e xucro rancho de mulheres perdidas, amava a inculta paisagem grapiúna, as grandes extensões de mata virgem e o deslumbre amarelo das roças de cacau.

Nos folguedos do engenho coubera-lhe o posto de obscuro figurante: serviçal, mero criado doméstico mesmo quando fornicava a Senhora Baronesa na alcova da casa-grande, nos alvos lençóis de linho do Senhor Barão.

Em Tocaia Grande, um homem livre desafiando a solidão plantava as sementes de outra festa.

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