Ora, se deu que uma noite... |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 259
O barbeiro conseguia que, libertos da
prisão da gaiola, voassem dentro e fora da casa, fossem longe, e em seguida
retornassem vindo pousar em cima da jaula ou na porteira de gravetos de bambu,
aberta, à espera.
Dobravam o canto e permitiam que Dodô os
agradasse. Os moleques, mudos e pasmos, passavam horas vendo-o ensinar aos
pássaros aqueles impossíveis.
Assobiador emérito, Dodô assobiava
modinhas, os pássaros sofrês retomavam a melodia e aprendiam a imitar na
perfeição o chilro dos vizinhos de gaiola. Os passarinhos de Dodô Peroba não eram
apenas mansos e ensinados como outros por aí afora: eram artistas dignos de
figurar num circo.
Assim lhe dissera o coronel Boaventura
Andrade que em sua mão comprara um concriz - concriz, joão-pinto, sofrê e
corrupião são alguns dos nomes pelos quais se conhece o pássaro sofrê - para
dar de lembrança à moça Sacramento: ouvira-a referir-se à nostalgia do canto do
corrupião, coisa mais tocante a seu ver não existia.
Os pássaros que Dodô criava e amansava
não chegavam para as encomendas, pedidos provenientes das fazendas, da estação de
Taquaras, até de Itabuna. O passarinheiro porém desfazia- se deles contra a vontade e com tristeza, e
somente ao fim de prolongada negociação.
Não vendia ao primeiro que aparecesse,
a qualquer um. Queria antes ter certeza de que o comprador gostava realmente de
bichos, não era um daqueles desalmados donos de rinhas de galos e de passarinhos
que os criavam na intenção de lutas e apostas.
Solta na barbearia vivia uma rola
fogo-pagou, essa ele não admitia vender nem por todo o ouro do mundo:
beliscava-lhe os dedos dos pés, pousava em seu ombro ou sobre a ouriçada
gaforinha descobrindo e esticando com o bico os primeiros fios de cabelo branco.
Propostas de compra não faltavam, já
recebera várias e recusara todas, enraivecendo-se, abandonando sua habitual
pachorra, quando insistiam. Como poderia viver sem ouvi-la repetir a cada
momento a onomatopéia sonora e divertida: fogo- pagou, fogo-pagou! Era visto à
porta, sentado num tamborete de madeira, a ave na cabeça a picar-lhe a
gaforinha.
Ora, se deu que uma noite, passado o
acorçôo dos tropeiros, quando o silêncio se fez no descampado, Dodô Peroba
despertou do sono leve ouvindo surpreso a rolinha emitir o alegre aviso: àquela
hora deveria estar adormecida na gaiola, a alba do dia ainda não se anunciara.
Levantou-se da esteira e escutou no escuro:
os pássaros dormiam, não provinha da sala o grito que continuava a se fazer
ouvir, obstinado apelo. Chegava de fora, seria de um pássaro perdido, aflito e
louco. Quem sabe ferido na asa, sem poder voar, solicitando ajuda?
Deslocando-se sem fazer barulho para não
perturbar os passarinhos, Dodô Peroba esgueirou-se até a porta. Não andou dois passos:
logo enxergou a lesa ali acocorada, sob o chuvisco. Ao divisá-lo no negrume,
Ção sorriu, pôs-se de pé e lhe estendeu os braços.
CRESCEM AS
ÁGUAS DO RIO, QUASE ACABAM COM TOCAIA
GRANDE
1
Sob o aguaceiro torrencial, pingando
água, o capote encharcado, o coronel Robustiano de Araújo desmontou na porta da
oficina do ferrador de burros. Entregou a rédea ao capanga que o acompanhava, Nazareno,
irmão mais moço de Gerino, dois cabras de absoluta confiança:
- Me espere no depósito.
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