quarta-feira, junho 03, 2015

Ora, se deu que uma noite...
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)




Episódio Nº 259




















O barbeiro conseguia que, libertos da prisão da gaiola, voassem dentro e fora da casa, fossem longe, e em seguida retornassem vindo pousar em cima da jaula ou na porteira de gravetos de bambu, aberta, à espera.

Dobravam o canto e permitiam que Dodô os agradasse. Os moleques, mudos e pasmos, passavam horas vendo-o ensinar aos pássaros aqueles impossíveis.

Assobiador emérito, Dodô assobiava modinhas, os pássaros sofrês retomavam a melodia e aprendiam a imitar na perfeição o chilro dos vizinhos de gaiola. Os passarinhos de Dodô Peroba não eram apenas mansos e ensinados como outros por aí afora: eram artistas dignos de figurar num circo.

Assim lhe dissera o coronel Boaventura Andrade que em sua mão comprara um concriz - concriz, joão-pinto, sofrê e corrupião são alguns dos nomes pelos quais se conhece o pássaro sofrê - para dar de lembrança à moça Sacramento: ouvira-a referir-se à nostalgia do canto do corrupião, coisa mais tocante a seu ver não existia.

Os pássaros que Dodô criava e amansava não chegavam para as encomendas, pedidos provenientes das fazendas, da estação de Taquaras, até de Itabuna. O passarinheiro porém desfazia-  se deles contra a vontade e com tristeza, e somente ao fim de prolongada negociação.

Não vendia ao primeiro que aparecesse, a qualquer um. Queria antes ter certeza de que o comprador gostava realmente de bichos, não era um daqueles desalmados donos de rinhas de galos e de passarinhos que os criavam na intenção de lutas e apostas.

Solta na barbearia vivia uma rola fogo-pagou, essa ele não admitia vender nem por todo o ouro do mundo: beliscava-lhe os dedos dos pés, pousava em seu ombro ou sobre a ouriçada gaforinha descobrindo e esticando com o bico os primeiros fios de cabelo branco.

Propostas de compra não faltavam, já recebera várias e recusara todas, enraivecendo-se, abandonando sua habitual pachorra, quando insistiam. Como poderia viver sem ouvi-la repetir a cada momento a onomatopéia sonora e divertida: fogo- pagou, fogo-pagou! Era visto à porta, sentado num tamborete de madeira, a ave na cabeça a picar-lhe a gaforinha.

Ora, se deu que uma noite, passado o acorçôo dos tropeiros, quando o silêncio se fez no descampado, Dodô Peroba despertou do sono leve ouvindo surpreso a rolinha emitir o alegre aviso: àquela hora deveria estar adormecida na gaiola, a alba do dia ainda não se anunciara.

Levantou-se da esteira e escutou no escuro: os pássaros dormiam, não provinha da sala o grito que continuava a se fazer ouvir, obstinado apelo. Chegava de fora, seria de um pássaro perdido, aflito e louco. Quem sabe ferido na asa, sem poder voar, solicitando ajuda?

Deslocando-se sem fazer barulho para não perturbar os passarinhos, Dodô Peroba esgueirou-se até a porta. Não andou dois passos: logo enxergou a lesa ali acocorada, sob o chuvisco. Ao divisá-lo no negrume, Ção sorriu, pôs-se de pé e lhe estendeu os braços.



CRESCEM AS ÁGUAS DO RIO, QUASE ACABAM COM TOCAIA GRANDE

1

Sob o aguaceiro torrencial, pingando água, o capote encharcado, o coronel Robustiano de Araújo desmontou na porta da oficina do ferrador de burros. Entregou a rédea ao capanga que o acompanhava, Nazareno, irmão mais moço de Gerino, dois cabras de absoluta confiança:

- Me espere no depósito. 

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