segunda-feira, agosto 17, 2015

Envelhecera, já não era o mesmo
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)


Episódio Nº 313

























Tanto um quanto outro tinham arriscado a vida a seu serviço. Não estaria ali, conversando, não fossem eles. Natário por duas vezes, Espiridião por uma, ao menos, atiraram antes que jagunços a mando dos inimigos completassem com êxito o trabalho contratado a peso de ouro.

Jurado de morte durante o decénio das lutas sem quartel quando coronéis e jagunços construíram e asseguraram a riqueza com o dedo no gatilho.

Em Estância, o velho José Andrade, trombonista da Lira Estânciana, se divertira até morrer. Na varanda da casa-grande o coronel Boaventura Andrade, milionário e poderoso, refletia sobre o destino das criaturas.

Em Ilhéus e em Itabuna pululavam bacharéis, raça velhaca e suspeita; funcionavam Lojas Maçônicas e Associações Comerciais; o colégio das ursulinas formava professoras; circulavam jornais, alguns todas as semanas, remexendo na política, ocupação asquerosa e necessária; nos cabarés exibiam-se dançarinas; fundavam-se hospitais; todas as semanas desembarcavam dos navios da Bahiana conferencistas em busca de dinheiro, os divertidos contavam anedotas, os maçantes declamavam poesias; e até um grêmio literário fundaram em Água Preta por ocasião de recente visita do filho do coronel Emílio Medauar, o tal que escrevia versos e fora colega de Venturinha na Faculdade de Direito.

Vagabundos os dois no Rio de Janeiro, gastando dinheiro a rodo, o escrevinhador ao menos dava aos pais motivos de ufania e vinha tomar-lhes a bênção, no São João e no ano-novo, pondo Água Preta em polvorosa: os letrados e as moças.

Bom filho, devotado aos pais. O seu, nem isso. Devotados eram Natário e Espiridião.

Tanta grandeza nas cidades, luxo e pompa nos bangalôs e palacetes, discursos, artigos de fundo, recitativos, conferências, dança dos sete véus e mil outras sublimidades: toda essa vanglória se tornara possível porque Natário, Espiridião e a facinorosa laia dos jagunços, Boaventura Andrade, Emílio Medauar e a gloriosa grei dos coronéis haviam empunhado os trabucos e partido para a conquista da mata: cada palmo de roça custara uma vida, por assim dizer.

Os notáveis discursavam e escreviam sobre civilização, progresso, idéias liberais, eleições, livros e outras bobagens, palavrório e enrolação. Se eles, coronéis e jagunços, não houvessem desbravado as matas e plantado a terra, o eldorado do cacau, tema das perorações e dos ditirambos, nem em sonhos existiria.

Ouvindo Natário falar a respeito dos estancianos, o Coronel pousou sobre os dois cabras o olhar afetuoso e sentiu no peito estima e gratidão.

Envelhecera, já não era o mesmo pai-d'égua, tampouco o manda-e-faz autoritário, senhor de baraço e de cutelo, a ordenar na política e na justiça, na Intendência e nos cartórios de Itabuna.
  

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