Envelhecera, já não era o mesmo |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 313
Tanto um quanto outro tinham arriscado a
vida a seu serviço. Não estaria ali, conversando, não fossem eles. Natário por
duas vezes, Espiridião por uma, ao menos, atiraram antes que jagunços a mando
dos inimigos completassem com êxito o trabalho contratado a peso de ouro.
Jurado de morte durante o decénio das lutas
sem quartel quando coronéis e jagunços construíram e asseguraram a riqueza com
o dedo no gatilho.
Em Estância, o velho José Andrade,
trombonista da Lira Estânciana, se divertira até morrer. Na varanda da
casa-grande o coronel Boaventura Andrade, milionário e poderoso, refletia sobre
o destino das criaturas.
Em Ilhéus e em Itabuna pululavam
bacharéis, raça velhaca e suspeita; funcionavam Lojas Maçônicas e Associações
Comerciais; o colégio das ursulinas formava professoras; circulavam jornais,
alguns todas as semanas, remexendo na política, ocupação asquerosa e
necessária; nos cabarés exibiam-se dançarinas; fundavam-se hospitais; todas as
semanas desembarcavam dos navios da Bahiana conferencistas em busca de
dinheiro, os divertidos contavam anedotas, os maçantes declamavam poesias; e
até um grêmio literário fundaram em Água Preta por ocasião de recente visita do
filho do coronel Emílio Medauar, o tal que escrevia versos e fora colega de
Venturinha na Faculdade de Direito.
Vagabundos os dois no Rio de Janeiro,
gastando dinheiro a rodo, o escrevinhador ao menos dava aos pais motivos de
ufania e vinha tomar-lhes a bênção, no São João e no ano-novo, pondo Água Preta
em polvorosa: os letrados e as moças.
Bom filho, devotado aos pais. O seu, nem
isso. Devotados eram Natário e Espiridião.
Tanta grandeza nas cidades, luxo e pompa
nos bangalôs e palacetes, discursos, artigos de fundo, recitativos,
conferências, dança dos sete véus e mil outras sublimidades: toda essa
vanglória se tornara possível porque Natário, Espiridião e a facinorosa laia
dos jagunços, Boaventura Andrade, Emílio Medauar e a gloriosa grei dos coronéis
haviam empunhado os trabucos e partido para a conqui sta
da mata: cada palmo de roça custara uma vida, por assim dizer.
Os
notáveis discursavam e escreviam sobre civilização, progresso, idéias liberais,
eleições, livros e outras bobagens, palavrório e enrolação. Se eles, coronéis e
jagunços, não houvessem desbravado as matas e plantado a terra, o eldorado do
cacau, tema das perorações e dos ditirambos, nem em sonhos existiria.
Ouvindo Natário falar a respeito dos
estancianos, o Coronel pousou sobre os dois cabras o olhar afetuoso e sentiu no
peito estima e gratidão.
Envelhecera, já não era o mesmo
pai-d'égua, tampouco o manda-e-faz autoritário, senhor de baraço e de cutelo, a
ordenar na política e na justiça, na Intendência e nos cartórios de Itabuna.
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