sábado, agosto 08, 2015

Vim tomar conta do menino
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)


Episódio Nº 306


















No fim da tarde de verão um fogaréu queimava o céu de Tocaia Grande, fulguração de vermelhos e amarelos.

Entregando a Edu a pata da égua para que o rapazola completasse o serviço com o puxavante, Tição, fixando a vista,
enxergou a silhueta de um vivente, esbatida contra as luzes e as sombras do pôr-do-sol.

No pensamento do ferrador de burros perpassou uma idéia fugaz e absurda: ia por fim tirar a limpo o mistério que cercava a aparição de Alma Penada em Tocaia Grande.

Decorridos tantos anos, alguém vinha por ele, disposto, quem sabe, a reavê-lo.

Vago perfil de mulher, envolto em luz e em poeira, o vulto se abaixou, largou no chão a trouxa de viagem para melhor receber e retribuir os afagos do cão.

Naquele preciso momento, sem enxergar-lhe as feições nem o contorno da figura, o negro soube de quem se tratava: só podia ser ela e mais ninguém.

 Desde que partira, jamais dera notícia. Tição manteve-se parado, à espera, sem manifestar reação qualquer que fosse: morto por dentro, vivo apenas na aparência.

Ao menos assim corria no arraial: a verdadeira alma penada na oficina era o ferreiro e não o cão. Passo maneiro, corpo sacudido, o bamboleio dos quadris, Epifânia se aproximou, o rosto sério.

Comedida nos modos, sem espalhafatos, não arreganhava os dentes, não se desfazia em dengue. Nem parecia aquela lambanceira e atrevida, luxenta, que virava a cabeça dos homens e perturbava a paz.

Parou diante de Tição, o atado sob o braço, o cachorro saltitando em redor:

- Vim tomar conta do menino. Andei sumida, tava amigada.

Trasantonte encontrei Cosme, ele me contou. Fiquei sentida.

A voz serena e firme:

- Cadê ele, o meu menino? Não vou embora nem que tu mande.

Sem esperar resposta, andou para a porta da oficina, seguida por Alma Penada, entrou casa adentro. Lavado em sangue, o sol afogava-se no rio.


2

Em companhia da neta Aracati, cujos quinze anos não haviam festejado devido à febre que grassara no inverno, sia Leocádia percorreu a meia légua que mediava entre as plantações dos estancianos e as do povo de Vanjé.

Valente andarilha apesar do fardo da idade a lhe vergar os ombros, a moleca devia aligeirar o passo para acompanhá-la.

Iam as duas conversando sobre assuntos insólitos naquelas capoeiras. Discutiam trajes de pastoras, pastoras de estrelas conforme davam a perceber, e se referiam a personagens cujos nomes e títulos ressoavam estranhos e sedutores: Dona Deusa, Besta-Fera, Caboclo Gostosinho.


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