domingo, setembro 06, 2015

Largo do Seminário - Santarém
Hoje é Domingo
(Na minha cidade de Santarém em 6/9/15























Outubro de 1963 - Guerra de Angola – Centro Norte.

Nessa manhã, ainda o sol não nascera e já tinha dado ordem para nos pormos a caminho continuando a subir o vale em marcha que só não era forçada porque as condições do terreno e da vegetação não o permitiam.

Era ténue a minha esperança de conseguir escapar à emboscada que de certo nos esperaria em qualquer ponto do percurso.

Na véspera, um militar meu tinha morto uma jovem quando ela, trabalhando na lavra, apercebendo-se da presença do exército, fugia subindo a encosta do vale, no lado oposto.

O soldado, que tinha a alcunha do “boi”, pelo seu aspecto maciço, deu-lhe um tiro nas costas que lhe atravessou o coração e lhe ditou a morte instantânea.

Os guerrilheiros não podiam permitir que a tropa fosse ao seu terreno matar uma rapariga do seu povo, da mesma forma que se caça uma gazela, e saísse do emaranhado de toda aquela vegetação em total impunidade.

 O “boi” tinha cumprido uma ordem dada pelos generais que mandavam naquela guerra: “na mata, tudo quanto mexer é para matar”.

Para eles, guerrilheiros, tirar desforra daquela morte, era uma questão de honra.

Por isso, começamos a andar ainda quase de noite e continuámos a apressar o andamento na esperança de sair dali depressa, antes que eles tivessem tempo de armarem a espera.

Já era bem de dia quando o vale se bifurcou.

Eu devia continuar em frente, sempre para norte, sempre por aquele vale, eram as ordens que tinha para a operação.

O Quartel-General sabia bem que era ao longo dele que se encontravam as populações e por isso o itinerário era aquele e não outro.

Mas, chegados àquela bifurcação, sem qualquer percalço, decidi desrespeitar as ordens superiores e seguir pelo vale da esquerda, mais estreito que o outro que seguia também para Norte, de vegetação mais densa de tal forma que ninguém seria capaz de montar ali uma emboscada ou fosse o que fosse, e em distância para o ponto de chegada parecia-me ligeiramente mais curto.

Disse aos soldados para encherem os cantis num fiozinho de água que por ali passava e foi nesse momento, com eles dobrados sobre si próprios, involuntariamente meio escondidos pela vegetação para recolherem a água, que o tiroteio começou.

Eles pensaram exactamente aquilo que eu iria fazer, aquele era o sítio certo para a emboscada, antes de fugir pelo vale da esquerda que tendo uma vegetação tão densa não permitiria qualquer acção militar.

Eu fui apanhado de pé, os tiros prosseguiam e eu de pé continuava num aparente e louco desafio: - "Vá, estou aqui, de pé, acertem-me se forem capazes, vinguem a vossa jovem que nós matámos...”.

 - “Meu alferes, saia daí, esconda-se, que eles matam-no!” - gritou-me o Maia, (já falecido) deitado atrás de um tronco de uma árvore caída no terreno.

Dirigi-me para junto dele com o passo de quem muda de mesa na esplanada do café e com a inconsciência do perigo mas a sorte própria de quem não nasceu com vocação para aquelas coisas.

- “Meu alferes, as balas aos seus pés até levantavam pó!” -  disse-me ele quando me abriguei a seu lado.

Entretanto, alguém gritou que eles estavam em cima das árvores a fazerem fogo para cima de nós e logo tudo quanto tinha folhas e ramos foi varrido pelas rajadas das espingardas G3 e FN.

Nitidamente, o efeito surpresa tinha passado e agora o nosso maior poder de fogo estava a impor-se.

Chamei o soldado da bazuca, o “Capela”, e mandei-o disparar duas granadas na esperança de que alguma delas conseguisse passar por entre as árvores e explodisse contra a outra encosta do vale.

A primeira rebentou logo à nossa frente, deu cabo de uma árvore que estava muito próxima e “choveram” bocadinhos de madeira para cima de nós.

 - “Éh pá! levanta o cano dessa merda para ver se consegues fazer a granada passar por cima das árvores!”

Inspirado pelos “deuses da guerra”, o “Capela”, à segunda tentativa, conseguiu que a granada passasse por entre as árvores, as sobrevoasse triunfante e estourasse contra a encosta, no outro lado do vale.

 O efeito ultrapassou tudo o que se poderia esperar: o estrondo do rebentamento multiplicado pelo eco, possível pelo facto das encostas serem suficientemente íngremes e próximas a funcionarem como paredes em frente uma da outra, parecia coisa do apocalipse.

De repente, vinte exércitos tinham entrado em cena e accionado os seus dispositivos de lançamento de granadas.

Quando, finalmente, os ecos do rebentamento se deixaram de ouvir, a guerra tinha acabado, a calma e o silêncio estabeleceram-se como se nada ali tivesse acontecido.

O homem da bazuca tinha acabado de ganhar a guerra… a bazuca e o eco.

Levantámo-nos lentamente olhando e perguntando uns pelos outros e inacreditavelmente estavam todos vivos, nem um ferido, apenas o sargento enfermeiro, de mais idade e pesado, tinha desmaiado de comoção mas estava a recuperar.

Tiveram a oportunidade de uma justa vingança e não a aproveitaram. Dispararam de surpresa de cima das árvores a distâncias que não eram muito grandes e poderiam ter-nos causado inúmeras baixas…éramos mais de cinquenta alvos.

Em vez disso, não acertaram em ninguém, a jovem não foi vingada… mas eles tentaram, cumpriram a sua obrigação, provavelmente com feridos ou mortos pois foram vistos alguns a atirarem-se das árvores, não sabemos se atingidos ou simplesmente em fuga.

A continuação da marcha foi penosa, momentos houve em que a vegetação de tão densa que era nos aprisionou de pernas e braços, obrigando a recuos e avanços que eram uma autêntica luta contra o emaranhado verde dos ramos.

Finalmente, exaustos de cansaço, fome e sede porque no meio de toda aquela confusão, na pressa de abandonar o local nem enchemos os cantis de água, lá chegámos ao destino, de noite, mas vivos e sem feridos.

Aquilo que nos separou da morte, nesse dia, foi um simples capricho do acaso. Hoje, mais de 50 anos depois, a minha convicção continua a ser a mesma: o jogo do acaso, na manhã daquele dia, no norte de Angola, poupou-nos a vida, as nossas humildes vidas.

Pensei muitas vezes, ao longo de todos estes anos, na jovem morta pelo “boi” com um sentimento de culpa.

Propositadamente, não quis vê-la para não lhe recordar o rosto pela vida fora, mas é fácil imaginá-lo e ela tem-me acompanhado, sinal de que a minha consciência não está completamente descansada.

Afinal, eu era o comandante daquela Operação e antes dela começar deveria ter dado instruções a todos os soldados de que, a menos que fôssemos atacados, ninguém daria tiros sem minha autorização.

Esta ordem ficou por dar e talvez por isso, tenha custado a vida àquela rapariga e a minha consciência carregará sempre esse peso.

Para ela, flores…todas as flores deste mundo!

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