O resto do enredo o amigo Natário conhecia. |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 368
Grato encargo, pois lhe permitiria
cobrar-se de agravo antigo.
Terminou referindo-se ao nome do Capitão
e, a partir daí,
Espiridião já não o perdeu de vista. Pôs-se
no seu calcanhar, acompanhou de longe o encontro do cabra com o cabo Chico
Roncolho, subdelegado de polícia de Itabuna chegado no trem de ferro, e,
mantendo boa distância para não ser visto, pisou nos passos de Dalvino quando o
cabra tomara o caminho para Tocaia Grande.
O resto do enredo o amigo Natário
conhecia.
O negro lastimava apenas não ter atirado
antes do miserável, evitando a morte de Bernarda. Mas, da porta enxergava mal o
interior do quarto, imerso nas sombras da boca da noite.
Temera acertar na moça ou em Natário, só
pudera descarregar a arma no clarão do tiro de Dalvino. Uma tristeza, a morte
de Bernarda: era a rapariga mais bonita na vastidão do rio das Cobras, nenhuma
se lhe podia comparar: uma estampa de folhinha.
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Jacinta, dita Coroca havia muito tempo,
por fim pareceu uma velhinha miúda e acabada, desvalida, como se a idade e o cansaço
se lhe tivessem tombado, de vez e de repente, na cacunda.
Acocorada ao pé do leito de morte de
Bernarda a fitar-lhe o rosto. Leito de morte, cama de campanha onde a formosa
exercera o ofício de puta durante tantos anos e durante todos esses anos fora mulher
apenas de um homem, o seu padrinho.
Duas vezes comadre. Coroca pegara o menino
que ela parira; depois o batizara no altar da Santa Missão. Mais do que comadre,
filha, pois quando se encontraram em Tocaia Grande e Coroca a adotara, Bernarda não passava
de uma criança agravada pelo sofrimento: o cabaço comido pelo pai; a mãe
entrevada na cama; crescidas ela e a irmã caçula, na fome e na porrada.
Fosse filha de sangue, concebida em suas
entranhas, não seria mais querida.
No decorrer daqueles anos, habitando as
duas a mesma casinhota mandada construir pelo capitão Natário da Fonseca,
jamais uma má palavra, um gesto abrupt o,
cisma de qualquer espécie, a menor desconfiança se interpusera na perfeita
convivência das comadres.
Meu Deus, de agora em diante como iria
ser? Coroca abanou a cabeça, não queria pensar.
Não pensava em nada, não recordava o
passado, acontecimentos, conversas, projetos, horas tristes e alegres, perigos,
sonhos e festas. Estava seca e vazia como se lhe houvessem arrancado coração e
tripas, a golpes de punhal.
Lavara o corpo de Bernarda e o vestira,
penteara-lhe os cabelos escorridos e pendurara- lhe nas orelhas os brincos que
o padrinho lhe dera de presente.
Pouco a pouco, o povo foi chegando para a
sentinela. As raparigas trancaram os balaios, em sinal de luto.
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Com meu silêncio eu lhes digo, comadres e
compadres: nos tempos de antanho, nesta terra grapiúna onde cresce a lavoura do
cacau, a mais bela e a mais rica de quantas no mundo se plantam e se cultivam,
existia uma decência de palavra empenhada, uma nobreza de trato, não se fazendo
necessário o uso de papel timbrado ou a apresentação de documento.
Os
cidadãos, os ricos e os pobres, os coronéis e os jagunços, tinham a mesma
estatura na lealdade e no respeito, no brio e na honra.
A traição se pagava com a morte.
Muita coisa mudara, por fora e por dentro,
desde aquele ontem quando se cruzava a estrada de bacamarte em punho e a confiança
entre os lordes e os valentes era moeda preciosa e acreditada.
Agora manda outra gente. O rosto de
Natário, pedra adusta, não deixava transparecer os amargos pensamentos, não reflectia
a dor da ausência de quem fora amante e afilhada, quase filha.
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