Carmosina, agente dos Correios, cidadã importante. |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 7
ONDE SE TRAVA
CONHECIMENTO COM DONA CARMOSINA, CIDADÃ IMPORTANTE, AGENTE DOS CORREIOS, E SE
TEM NOTÍCIA DOS FILHOS DE SEU EDMUNDO PACHECO, COLETOR, COMPENSANDO A FALTA DE
CARTA E CHEQUE DE TIETA SOBRE CUJO ESTADO DE SAÚDE CRESCE O PESSIMISMO.
Ainda de longe, antes de transpor a
porta dos Correios, Elisa lê, na atitude de Dona Carmosina, a comprovação do
que já sabia com certeza: a carta não chegara. Braços caídos, semicerrados os
olhos miúdos, o ar grave, a activa funcionária vive, ela também, o drama do
inexplicável atraso. Faz-se mais pálida a face de Elisa, os pés de chumbo, a
voz inarticulada, quase um gemido:
- Nada?
Cinquentona, sarará, corpulenta, cara
larga, a voz rouca, dona Carmosina indica a correspondência do dia, escassa,
espalhada no balcão:
- Nada! Hoje não veio nenhuma carta
registada. Por via das dúvidas, passei as malas duas vezes, carta por carta. O
que chegou está aí, pouca coisa. Ainda não entreguei nada, você é a primeira a
aparecer. Vieram jornais e revistas, isso sim, hoje é sábado. – Repara na
palidez da amiga: - Quer um pouco de água?
- Não, obrigado. – As palavras saem
estranguladas.
- Que demora, hein? Em todos estes
anos, nunca atrasou tanto…
- Mais de dez anos… - gemeu Elisa.
Onze anos e sete meses – corrigiu
dona Carmosina, escrupulosa nos detalhes: - Inda me lembro da primeira carta,
como se fosse hoje.
Quando abri o saco, senti logo o cheiro, naquele tempo ela
usava um perfume mais forte do que o de agora, encheu a sala. Que carta será
essa?
Perguntei a mim mesma e li correndo o subscrito e o nome do remetente.
Estava dirigida a seu pai ou a qualquer membro da família Esteves e quem
enviava era Antonieta Esteves, Caixa Postal 6211, São Paulo, Capital. Vou
buscar água para lhe dar, com esse calorão e nada de carta, coitadinha…
Enquanto de costas, dona Carmosina
toma da moringa e enche o copo, Elisa curva-se sobre a correspondência, não por
manter esperanças, mas por desencargo de consciência.
- Botei duas gotas de água de flor.
Faz bem prós nervos.
Elisa bebe em pequenos goles, dona
Carmosina retoma a narrativa:
- O envelope cor-de-rosa, lindo,
parece que estou vendo. Pelo falecido seu Lima mandei recado para seu marido na
loja, vocês estavam casadinhos de novo. Ele veio com Osnar, entreguei, leu aqui mesmo. Carta mais bonita, pedindo notícias, do
pai, das irmãs, como iam de saúde e de vida, se precisavam de ajuda. Até
colaborei na resposta, se lembra?
- Me lembro…o major era vivo, foi ele
quem escreveu…
- Era burro que nem uma porta mas
tinha a letra bonita… Letra dele, redacção minha De lá para cá nunca mais
falhou. Todo o mês a carta com o cheque, o rico dinheirinho…
Empolgada, dona Carmosina nem sente o
mormaço a entrar pelas duas portas asfixiante. Pensativa a olhar para Elisa:
- Nunca demorou desse jeito… esqui sito mesmo.
Elisa percebe, na voz da amiga, inqui etante sinal de alarme. Tenta acalmá-la e
acalmar-se:
- Uma vez quando ela estava passeando
em Buenos Aires…
- Chegou no dia dezassete…dezassete
de Fevereiro, exactamente. Hoje estamos a vinte e oito de Novembro. A que você
atribui? Doença?
- Os olhos pequeninos de dona Carmosina observam Elisa que
segura o copo vazio sem receber resposta, o choro preso na garganta.
Felizmente apareceu seu Edmundo,
Edmundo Ribeiro, o coletor, enfarpelado, paletó, gravata e chapéu, deseja
boa-tarde:
- Alguma coisa para mim Carmosina?
- Duas cartas, uma do filho, outra do
genro… - ri com os lábios descorados, divertida: - Aposto que os dois estão
pedindo dinheiro…
O coletor recolhe as cartas, olha
através dos envelopes contra a luz, que pode impedir que dona Carmosina saiba e
comente a vida alheia, não passam por suas mãos (e vistas) telegramas e cartas?
Carmosina, quase albina, mais que ladina, voz masculina, língua ferina, doce
assassina – declamava Aminthas, seu primo segundo e comensal assíduo. Dona
Carmosina é de bom tempero, famosa no pirão de leite e no molho pardo. E o
cuscuz de milho?
- Como se eu fosse um saco sem fundo,
entupido de dinheiro… - seu Edmundo suspira, sem pressa de abrir os envelopes
apesar do desejo de saber dos filhos, Dirige-se a Elisa: - Feliz é Zé Esteves,
seu pai, dona Elisa. Tem filha rica que manda em vez de pedir. Comigo é o
contrário…
Dona Carmosina relanceia a vista,
considera Elisa, informa:
- Este mês a carta de Tieta ainda não
chegou. Esqui sito, não acha seu
Edmundo? Um atraso desses…
O coletor não esconde a surpresa, um
dos envelopes aberto:
- Ainda não? Que é que houve dona
Elisa?
- Quem sabe seu Edmundo? Para mim ela
está viajando, esses passeios que faz todos os anos de navio…
- Cruzeiros marítimos… - esclarece
dona Carmosina mas o olhar sob as sobrancelhas ruças exprime dúvida. Seu
Edmundo balança a cabeça, não encontra comentário a fazer, retorna à cata do
genro.
- Elisa despede-se, uma fraqueza nas
pernas que nem Astério:
- Obrigada, Carmosina.
- Agora, querida, só terça-feira. –
Para levantar-lhe o ânimo, não deixá-la partir tão por baixo, acrescenta: -
Você hoje está uma tetéia. Esse vestido eu ainda não conhecia…
- Foi Tieta que mandou…
Seu Edmundo suspende a leitura da
carta, escapa-lhe o desgosto da notícia:
- Suzana está esperando menino outra
vez…
Elisa reúne forças:
- Parabéns, seu Edmundo. Quando
escrever a Suzi mande um abraço meu…
- O quarto, não é? O senhor ainda tão
moço e já cheio de netos. Bonito, acho isso bonito. – A voz rouca de dona
Carmosina, sincera ou gozadora?
- Bonito, eu é que sei quanto me
custa…falta de juízo.
- Que é caro, lá isso é…Logo agora
tão fácil de evitar, com a pílula. Na Baía, se encontra em qualquer farmácia, a
venda é livre…até a Igreja já aprova o uso – acentua dona Carmosina,
doce assassina.
Elisa diz até breve, atravessa a
feira barulhenta, em direcção à casa de Perpétua. Não sente o peso do olhar do
árabe, não lhe alisa a bunda a mirada de nenhum moleque nem lhe fere o ouvido a
assobio do mendigo. Doença, insinuara Carmosina, para não falar no pior. Morta
sim, Elisa já não duvida, Perpétua sabe o que diz.
Há vinte e três anos na agência dos
Correios, dona Carmosina emite julgamentos definitivos sobre pessoas e factos:
- Moça boa e séria está aí, seu
Edmundo. Conheço Elisa de menina, sempre direita, cumpridora. Faz tudo no
capricho. Trabalhadeira, a casa dela é um brinco e gosta de se vestir, de se
arrumar, não é como outras por aí, que vivem no desmazelo. Só que agora,
pobrezinha…
Seu Edmundo, para melhor ouvir,
interrompe a leitura da carta do filho estudante:
- A que atribui tanta demora?
- Se Tieta não morreu deve estar
muito doente. O marido dela bem podia dar notícia mas ele nunca qui s conversa com os parentes daqui . Vou aconselhar Elisa ou Perpétua a telegrafar.
De volta à carta o coletor explica:
- Idiota! Só serve para isso…
- O que é que Leléu fez dessa vez,
seu Edmundo?
- Pegou numa carga de gonorreia;
desculpe, Carmosina, quero dizer blenorragia, e pede dinheiro urgente para
médico e remédios…
- Com duas doses de penicilina fica
bom. É tiro e queda. Tratamento barato nem precisa de médico.
Dona Carmosina lê os jornais antes de
entregá-los, sabe do que vai pelo mundo, entende de cinema, política, ciência.
Acumula o cargo nos Correios com a representação de A Tarde, da Baía, de
revistas do Rio e de São Paulo.
- Coitada da Elisa, ficou tão
transtornada, nem levou as revistas. Depois deixo em casa dela.
Separa a carta endereçada a Ascânio
Trindade pois o vê do outro lado da rua; carta de Máximo Lira, um amigo da
capital, sem interesse.
Antigamente, sim, tão romântico: Quando Astrud escrevia
cartas de amor e Ascânio em resposta enchia laudas de juras e saudades. Um
poeta, Ascânio, pena não escreva versos, seriam lindos.
Retorna dona Carmosina
ao silêncio de Tieta.
- Quer saber minha opinião, seu
Edmundo? Antonieta já não pertence a este mundo. Mortinha da silva.
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