Linda na sua nudez de mulher |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 11
Conhece-lhe a letra, grande, de escolar, incerta, enchendo com poucas palavras a bonita folha de papel, ora azul, ora laranja, ora verde cana, chique a valer. A letra e o perfume, fragrância rara para narinas habituadas ao fedor das velas consumidas, à morrinha das emboloradas alfaias, das fanadas flores, ao pobre odor das sacristias, das suarentas salas de aulas, à fumaça do incenso.
Ao remeter a bola de futebol, a tia rabiscara uma página dirigida a Cardo: Para
meu sobrinho querido, pálida lembrança da tia Tieta. Feliz, colocara o papel
lilás dobrado em quatro entre as folhas do livro da missa e às escondidas
aspirava-lhe o perfume.
Num assomo de orgulho, exibiu dedicatória e aroma a
Cosme, amigo predilecto, companheiro de devoções e retiros espirituais, vizinho
de carteira.
Cosme, um asceta, recusou-se a cheirar; em tudo via pecado,
tentação do demónio. Perfume? Pecado mortal; para os servos de Deus basta o
incenso. O padre confessor tranqui lizou
Ricardo; casto perfume da velha tia, não continha pecado, mortal nem venial.
Esses olhos misericordiosos a vós volvei – como seriam os olhos, a face da tia
Antonieta? Austera como a da mãe, rígida e devota? Inqui eta,
melancólica, igual à da tia Elisa? Ou semelhante à do avô, dura carranca de
caboclo?
Certa feita, há vários anos, meninote ainda, mostraram-lhe de relance uma foto
da tia numa revista do Rio – revista da qual Elisa se apoderou e nunca mais
ninguém a viu. Ricardo guardou memória apenas dos cabelos loiros, encaracolados
novelos de ouro – como explicá-los se todos na família eram bem morenos?
Soube
então que as mulheres oxigenavam e até pintávamos cabelos, sobre o assunto
discutiram a mãe e a tia Elisa. Moda condenável na opinião de Perpétua: Deus designa
a cor dos cabelos de cada um, ninguém tem o direito a mudá-la. Elisa retrucara,
tachando a irmã de atrasadona, rata de igreja. Dos olhos, da boca, Ricardo não
se lembra; recorda somente os novelos de ouro puro. Agora, à luz das velas, ele
os enxerga brancos de algodão, tantos anos se passaram – era um menino, agora é
um rapaz.
E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre, há
quantos anos dura o desterro da tia? Quando Ricardo nasceu Tieta partira há
muito e jamais ele ouvira da mãe, de tia Elisa, do avô e de sua segunda mulher,
vó Tonha, a menor referência àquela outra parenta; jamais escutou nome ou
apelido a recordá-la. Da tia de São Paulo, só veio a saber depois da primeira
carta e ainda hoje sabe tão pouco, além da riqueza, da bondade, da velhice.
Se a Virgem a salvar, pode ser que ela um dia apareça de visita, em pele e
osso, anciã amorável, de tão velha quase avó. Ricardo não conheceu avó
verdadeira, a materna falecida antes do casamento tardio de Perpétua com o
major, cujos pais já repousavam no Cemitério das Quintas, na Baía, quando o
aposentado militar surgiu no Agreste, por acaso e de chofre se curou da asma,
recuperou as forças, clima de sanatório.
Tia Antonieta preenche o vazio dos avós, Senhora Sant’Ana, a matriarca, a
protectora da família. Se ela sarar, se a Virgem lhe restituir a saúde,
Ricardo, após cumprir promessa, poderá lhe escrever outra carta, solicitando
uma vara de pesca, molinete, fio e iscas artificiais, semelhante à do anúncio
na reviste caça e Pesca, folheada no Correio com permissão de dona Carmosina.
Implorando segredo à tia – se a mãe soubesse o mundo viria abaixo.
Em troca dos joelhos macerados, da semana inteira de orações, não era pedir
muito; vara de pesca, molinete, fios e iscas e um segredo a mais entre os dois.
Coisa boa, um segredo. Ricardo tem segredos em comum com alguns santos, com a
Virgem e sobretudo com Santa Rita de Cássia, de quem é devoto.
Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria.
Na vela acesa a mando da mãe pela alma da irmã, o fogo da morte vacila e se
apaga sozinho. Esbugalham-se os olhos de Ricardo no assombro do milagre. Só a
chama da vida persiste na outra vela, poderosa é a santa Mãe de Deus, Amem
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