quinta-feira, dezembro 24, 2015

A Cólera 

e a Esperança















Se eu fosse remetido para a condição de “sem abrigo” não morreria de fome ou de frio. Morreria de desgosto por não ter uma casa, um espaço meu, pequeno ou grande, simples ou luxuoso, mas um espaço meu em que me sentisse rei.

Em 1977, eu não era um “sem abrigo”, tinha regressado ao meu trabalho de funcionário do Estado e reposto a minha dignidade nesse aspecto que, bem vistas as coisas, é de todos o mais importante, depois da segurança pessoal das nossas vidas contra a possibilidade de comportamentos arbitrários das autoridades que senti antes de regressar ao meu país, como refugiado das colónias.

Vivia, então, numa situação de favor em casa de uns parentes, em quarto interior que, de tão pequeno, o aparelho de TV, ao tempo a preto e branco, tinha de ficar ao fundo, aos pés da cama.

Não tinha recursos financeiros e o meu ordenado dava apenas para uma pequena renda de uma casa que, na altura, não existiam.

A revolução dos Cravos do 25 de Abril, pouco depois seguida da avalanche de vagas de retornados, foram uma surpresa, o país não estava à espera nem preparado, exaurido por uma guerra que não tinha fim.

Não havia casas. Simplesmente, não havia casas para abrigar centenas de milhar de famílias chegadas em cima umas das outras.

Eu, finalmente, por intermédio de um conhecido, arranjei uma que me foi disponibilizada por ele, que entretanto, ia para Lisboa.

O preço estava nos limites do meu ordenado, ainda me lembro, cinco mil escudos mensais.

Desculpem maçar-vos com estas recordações mas foi neste ponto que surgiu a raiva, num dia do ano de 1977, quando me disseram que a casa só me seria entregue se eu passasse cinquenta mil escudos, por baixo da mesa, a não sei quem, provavelmente, o dono da própria casa.

Nessa noite, eu não dormi por causa da raiva que sentia e a minha cabeça não parava a tentar forjar uma solução e a minha imaginação, cavalgando o sentimento da raiva, dispersava-se por todo lado até que parou nas Cooperativas de Habitação Económica de que tinha ouvido falar mas das quais não sabia muito.

- E se eu, em vez de uma casa arranjasse dezenas, centenas delas, quem sabe?...

Os governos de então faziam o que podiam para ajudar as pessoas, trabalhava na área social e sabia disso.

As Cooperativas de Habitação Económica, isso sabia eu, podiam obter ajudas financeiras para a construção de casas, num processo em estreita colaboração com as Câmaras Municipais e a dinâmica de grupos de pessoas num processo que era moroso e complexo mas... possível.

Tanto bastou para que, no outro dia, impulsionado pela raiva, saísse de manhã, direito à Câmara Municipal de Santarém, pedir uma audiência ao Presidente.

A partir daqui, a raiva, que nunca me abandonou deu um espaço à esperança e à determinação: nada ficaria por fazer, prometi a mim próprio, levaria tudo à frente... era uma espécie de esperança raivosa, uma vingança contra o egoísmo dos outros, que me fez ranger os dentes e pôr em cada gesto e palavras minhas, toda a convicção, toda a minha força interior para que ninguém tivesse dúvidas do objectivo que queria alcançar.

A história do percurso da minha Cooperativa de Habitação Económica “Lar Sacalabitano, levou vários anos e prestou-se a um folhetim que terminou bem no dia em que eu próprio entreguei 96 chaves de outras tantas casas a outras tantas famílias, que não a mim, porque ao fim desses anos já tinha arrendado uma casa para mim.

Foram as dezenas... as centenas viriam em anos seguintes, numa 2ª e 3ª fases, chegando às centenas, mais de 400 apartamentos, numa zona nobre da cidade de Santarém, Av. Bernardo Santareno, do lado direito, de quem desce, antes de chegar ao edifício do novo Hospital.

Foi o maior programa de Habitação Social do Distrito de Santarém e talvez de todas as cidades do interior do país e que teve contra si, primeiro o cepticismo, depois, a inveja, a intriga, as armadilhas, um pouquinho de tudo mas que começou e acabou sem interrupções, sem escândalos, nem falências, porque, como terá dito um técnico do Fundo de Fomento de Habitação que acompanhou todo o processo, teve à sua frente o Dr. Paula de Matos.

Reconheço o meu orgulho e a minha vaidade quando passo de carro na rua, ao longo daquele bairro, espaçoso, com zonas para as crianças e espaço para lojas que lhes dão vida.

O que esse técnico e todos os técnicos nunca souberam, é que foi tudo fruto de uma noite de raiva...

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