Linda na sua nudez de mulher |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nª 27
DA RESSURREIÇÃO E DO LUTO
Tieta ressuscitou na terça-feira, às cinco e vinte da tarde, e somente então a família falou
De que lhe serviria roupa treta dos parentes? Missa, sim, pelo
descanso da alma. De sétimo dia, com certeza. De mês, caso a dinheirama se
confirmasse.
Na terça-feira a marinete atrasou: dois pneus furados, o motor pifando a cada
cinco qui lómetros, nada além do
costumeiro. Assim, só de tardezinha dona Carmosina abriu a mala do Correio.
Na mesma viragem, Perpétua regressou de Esplanada para onde fora na véspera, na
companhia de Ricardo que ali tomou o ônibus para Aracajú.
O juiz a recebera após o jantar e ao final da conversa felicitou-a pelo empenho
em defesa dos interesses dos filhos, do pai e da irmã.
Para mim não quero nada,
Meritíssimo, mas pelo direito dos meus filhos e de minha irmã e do meu velho
pai brigo até morrer.
Pobre, sozinha e desprendida. O juiz se impressionou e
dona Guta, empolgada, serviu à corajosa viúva bolo de aipim e licor de pitanga.
De volta, Perpétua trouxe volumosa bagagem de conhecimentos e conselhos.
Cobram
percentagem elevada, naturalmente. Quantos por cento? Não saberia dizer com
exactidão: talvez quarenta, cinquenta por cento. Tanto? Um despropósito,
doutor!
Minha cara senhora, para correr o risco, botar dinheiro no fogo, pedem
caro, é justo. Os jornais do sul publicam anúncios de escritórios de advocacia
que trabalham nessas bases. Existem, inclusive, especialistas em causas
perdidas, mas a percentagem em tais casos sobe a setenta, oitenta por cento.
Doutor Rubim releu a notícia do recorte da Folha da Manhã. Os Almeida Couto,
gente graúda, minha senhora, de nata, muito dinheiro e muitos brasões.
Se os
dados da questão estiverem correctos, tal como a senhora afirma, trata-se de
causa ganha. O mais provável é que nem causa venha a haver, logo se chegue a
acordo, gente desse porte não ama ver-se imiscuída em trincas na Justiça.
A
senhora e sua família precisam apenas de um bom advogado.
Deus lhe pagará,
Meritíssimo, o tempo perdido com uma pobre viúva, sua criada às ordens. De
volta, acertará com o Velho e Astério a divisão das despesas da viagem: deixará
Pêro com Elisa, levando Ricardo, cujas férias começarão daí a uma semana.
Em
Esplanada averiguara os preços das passagens de ônibus para São Paulo,
embarcaria em Feira de Sant’Ana. Nem o preço, as despesas, a distância, nem os
perigos da grande cidade, nada a amedronta.
Não chegara a ir a Salvador com o
Major como haviam programado; Perpétua sente um aperto no coração ao recordar o
projecto. Mas não viajou sozinha a Aracajú para falar com o bispo, agradecer a
matrícula de Ricardo? Fora e depois voltara várias vezes, onde o perigo?
São Paulo é maior, capital mais desenvolvida, mas não pode ser muito maior nem
muito mais assustadora, Aracajú é um colosso.
Encontrava-se Perpétua ainda no banho, tentando limpar-se da poeira quando dona
Carmosina abriu a sacola das cartas registadas. Havia apenas uma, a de
Antonieta. Num brado de aleluia, dona Carmosina abandonando o resto da remessa,
saiu, porta fora, desabalada para a casa de Elisa, a carta na mão, bandeira
desfraldada ao vento:
- Chegou, Elisa, chegou!
- Deus seja louvado!
Abriram o envelope, lá estavam o cheque e novidades sensacionais: houvera
morte, sim, não existe fumaça sem fogo.
Mas quem morrera fora o Comendador e
não era nenhum Almeida Couto de quatrocentos anos e brasões. Nem por isso menos
rico industrial paulista, Comendador Felipe Cantarelli, meu inesquecível
esposo, quase um pai, cujo passamento me deixa viúva inconsolável.
Para consolar-se, rever a família e, quem sabe, adqui rir
uma casa, terreno na praia, de preferência nas imediações de Mangue Seco – no
futuro viria a curtir velhice e esperar a morte na doçura do clima de Agreste –
Antonieta anuncia próxima chegada.
Avisarei com tempo e levarei comigo Leonora,
minha enteada, filha do primeiro matrimónio de Felipe.
- Ela vai vir, Carmosina! Ela vai vir, que coisa boa! – também Elisa
ressuscita.
Convocados às pressas, acorreram todos: o pai e Tonha, Astério vindo do bar
acompanhado pela turma solidária, Perpétua trazendo Peto pela orelha.
Como se fosse o chefe da família, dona Carmosina, de pé, solene, declamou a
carta, Astério apoderou-se do cheque para descontá-lo.
Enquanto ouvia, Perpétua engolia informações e conselhos de juiz, a viagem a
São Paulo, a herança; com Antonieta viva, viúva milionária, mudara a situação,
cabia adapt ar-se.
Perpétua ergueu-se das cinzas e fitando a família reunida, comandou:
- Fosse quem fosse, o falecido era nosso parente, genro, cunhado e tio. Devemos
mandar dizer missa por sua alma e botar luto.
Quando nossa querida irmã chegar,
deve nos encontrar vestidos de negro, sofrendo com ela. Eu sei o que ela está
passando, conheço a dor da viuvez.
Dona Carmosina não conhece mas pode imaginar. Virar a perna na cama de casal, à
noite, e não encontrar o apoio do corpo do marido, do homem antes a
compartilhar do leito, solidão medonha, ai!
Maior só a solidão da solteirona,
dor sem tamanho, nem sequer a recordação da gostosura.
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