quarta-feira, dezembro 09, 2015

Linda na sua nudez de mulher
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº 26























Lá o que conta é a categoria, a classe, a beleza, a inteligência. Nenhuma boa qualidade foi negada a Tieta, durante o fim-de-semana, quando a cidade se comoveu com o anúncio do seu falecimento.


Enterraram-na virtuosa, exemplar.

Ao cair da tarde de Domingo, na hora da bênção, ninguém mais sustentava a frágil tese de Elisa – Tieta está viajando, gozando a vida em New York ou em Paris, Saint – Tropez ou em Bariloche.


Nem ela própria, desfeita, amparada pelo marido e por dona Carmosina. Ao abençoar o povo, padre Mariano, sem querer assumir responsabilidade por notícia não inteiramente confirmada, referiu-se no entanto, com visível sentimento, à triste versão a circular nas ruas. Louvou o coração puro daquela que, tendo merecido os bens do mundo, não esqueceu a família distante, a terra onde nascera.

Emocionado, revelou aos fiéis ter sido doação de Antonieta e não de anónimo paroquiano como fora dito na ocasião, a grande, a magnífica imagem em gesso da Senhora Sant’Ana, entronizada com festa e júbilo havia três anos, em substituição à anterior, velhíssima, semidestruida pelo tempo, de carcomida madeira, sem valor nem arte.

Como se vê, também o padre Mariano possuía um segredo em comum com Tieta, conhecido apenas de dona Carmosina, é óbvio. Também ele, além da agente dos Correios e do sobrinho Ricardo, a ela se dirigira, às escondidas, em peditório.

Sorri dona Carmosina, ao lado de Elisa. Por seu gosto estaria no fundo do adro com os rapazes, comentando. Amizade obriga, porém. O sobrinho chora, em frente ao altar, todo paramentado, a saia branca, a bata vermelha, a sacudir o turíbulo, odor de incenso, bastante para os servos de deus, nuca mais o perfume no envelope.

- Beleza de coroinha! – murmura Cinira, gulosa, à beira do barricão, uma coceira nas partes.

- Divino! – Dona Edna estala a língua no outro lado da Igreja, de joelhos ao lado de Terto, muito seu marido embora não pareça.

Ricardo, envolto em fumaça, ouve o louvor do padre à velha tia. Pensa nos cabelos brancos, nas rugas, nas mãos trémulas, mais avó do que tia.

Modesta, a generosa doadora exigira não fosse revelado seu nome. Somente agora, quando fúnebres notícias se ouviam, padre Mariano, passando por cima da promessa feita, põe os pontos nos ii, para que todos os devotos de Sant’Ana rezem com ele pela saúde de tão piedosa filha de agreste, rogando a Deus não passe a trágica nova de rebate falso, encontrando-se a boa dona Antonieta em gozo de perfeita saúde.

Alguns rezaram. Pela alma da defunta; em perfeita saúde ninguém a acreditou.

Em nenhum momento falou padre Mariano sobre o destino da velha imagem. Ainda bem, pois o novo cardeal anda com a mania de investigar o sucedido com as antigas e valiosas esculturas de santos, roubadas das igrejas e vendidas a antiquários e colecionadores.

Quem pode de boa fé, culpar o padre?

A imagem, pedaço de pau corroído pelo tempo, em péssimo estado, inútil, ele não a jogara no lixo por ter sido consagrada séculos atrás. Mas quando o famoso artista apareceu, atraído pela beleza da praia de Mangue Seco, e enxergando a destronada imagem da padroeira relegada para um canto da sacristia, ofereceu por ela o dinheiro necessário à compra do turíbulo, padre Mariano não vacilou.

O novo incensório precioso nas mãos de Ricardo a cercar de odorosa fumaça da Senhora Sant’Ana - a nova, refulgente, em gesso, pintada de cores lindas, uma obra de arte – foi adquirido com o dinheiro pago pela apodrecida madeira carunchosa. 

O artista afirmara tratar-se de problemas de devoção: no reino dos céus era a Senhora Sant’Ana a sua preferida e quanto lhe dissesse respeito, mesmo sem valor material – caso da velha imagem – tocava-lhe a alma, por isso a levava deixando razoável quantia em doação à igreja. Só quem o conhece sabe até onde vai a lábia do pintor Carybé. Muitas dele eu poderia contar, se me restasse tempo, cada qual a pior.

Hoje, restaurada, a velha imagem é parte da famosa colecção de outro celebrado artista, Mirabeau Sampaio. Como lá foi ter, não me atrevo sequer a pensar.

As barganhas entre esses cavalheiros são mais sujas e imorais do que a de dona Carmosina com Canuto Tavares, por mim desmascarada antes. 

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