terça-feira, janeiro 19, 2016

Nasceu para ser pastora, cuidar de seu rebanho...
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº 56




















MAIS UM FRAGMENTO DA NARRATIVA, NA QUAL – DURANTE A LONGA VIAGEM DE ÔNIBUS – LEITO DA CAPITAL DE SÂO PAULO À DA BAÍA – TIETA RECORDA E CONTA EPISÓDIOS DE SUA VIDA À BELA LEONORA CANTARELL




- Quando me dei conta da intenção de Jarbas: queria que eu fizesse a vida, ficando para ele o ganho, para sustentar sua malandrice, senti uma raiva subir pelo meu peito, uma sufocação.

O mais difícil foi arrancar o amor cravado em mim, no meu corpo inteiro. Tinha me apaixonado, estava entregue. Pela primeira vez não era só gozo de cama, era uma coisa diferente, tão boa.

Jarbas La Cumparsita subsistia com razoável largueza às custas do físico de gigolô latino-americano em filme de Hollyood.

Esbelto, corpo de toureiro, negros cabelos lisos à custa de brilhantina, o bigodinho, as unhas tratadas, a piteira longa e os olhos, ah!, olhos fatais. Aqui e ali as trabalhadoras reunidas em cooperativa para sustentar os gastos do galã. Ameaças quando preciso, uns bofetes, La Cumparsita vinha e recolhia a féria.

Mas para chegar a bom resultado fazia-se necessário que a obrigação fosse precedida de namoro e conquista, levando a recruta ao delírio: faça de mim o que você quiser, meu amor. 

Jarbas possuía uma pequena voz agradável, cantava tangos e, por vezes, dizia-se argentino.

Quando falou de amor a Tieta, declarando-se enrabichado, disposto a viver com ela para todo o sempre, contando vantagens de dinheiro e importância social, não foi a perspectiva de largar a vida, ter mando e filho que a jogou nos braços dele.

- Xodó tão grande, eu não pensava em nada disso, ele não precisava prometer me tirar da zona. Se me levasse para viver com ele, em casa nossa, eu de rainha, muito que bem. Mas se quisesse apenas vir tarde da noite, após a ocupação, deitar comigo, falar de coisa à toa, tomar de minha mão, dizer de palavras doces, cantar em meu ouvido me abrindo por dentro e por fora isso me bastava demais. Cega de amor.

Quando elas estavam presas sem remédio à melosa lábia e inegável competência nos embates de alcova, então Jarbas decretava a lei, ditava os itens do regulamento das finanças do casal: para ele, no mínimo setenta por cento da receita diária, daí para cima. Cafifa de tal status implica em despesas. Empenho no trabalho, nada de vagabundagem, cadela.

Eu estava desarvorada no auge da paixão, no maior amor e até começara a acalentar a ideia de morar com ele, largar o ofício, ser mulher direita, já pensou?

Tudo conversa mole para engabelar. Depois, igual aos tangos que ele cantava, la cumparsa de misérias sin fin, só então compreendi por quê. Me deu uma raiva, dele e de mim. Ele nem tinha acabado de falar, eu juntei calça e paletó, camisa e gravata, atirei tudo no corredor: fora daqui, escroto!

Revolta e fúria Jarbas não esperava. Vez ou outra, um gesto de recusa, boca e peito em choradeira. Resistência curta. Logo a lábia, a intimidação, a violência, em último caso: consolo e como sonhar, minha filha.

- Sonho tanto…

- Quem sonha, paga caro. Bom é querer. Comecei tudo de novo, devo esse favor a Jarbas La Cumparsita. Disse para mim mesma: puta posso ser mas de alto bordo. A partir daí cheguei ao que sou.

- Nunca mais se apaixonou, Mãezinha?

- Paixão daquela, de perder a cabeça, nunca. Gostar, gostei de alguns. De Filipe, demais.

Mesmo depois de Filipe ter falecido, Tieta não retirara os chinelos e o pijama do quarto de dormir, como se ele fosse voltar a qualquer momento. Em hora incerta, como sempre, para o sorriso e o beijo.

Com Filipe foi diferente, durou quase vinte anos. Quando me conheceu, eu ainda era jovem, esbadanada.

- Era doido por você, Mãezinha.

- Ele encontrava em mim alegria, o descanso, o outro lado da vida. Também não sei definir meu sentimento. Amor, amizade, gratidão, mistura das três coisas? Por isso vim nessa viagem, porque ele morreu e fiquei de novo sozinha como no começo. Para pegar nas duas pontas do novelo e dar um nó, ligar princípio e fim.

- Fim, Mãezinha? Tão nova, tão bonita, com tantos pretendentes?

- Não falo disso, ainda não apaguei o fogo, será que ele se apaga um dia? Penso que só com a morte. Quero apenas mergulhar no que fui, saber como seria se eu tivesse ficado em Agreste em vez de vir para São Paulo.

Quero tomar banho na Bacia de Catarina, no rio, enterrar os pés na areia das dunas de Mangue Seco. Só isso. E encher teu peito de ar puro, curar tua anemia.

- Mãezinha, você é tão boa!

- Boa e ruim, quando tenho raiva ninguém pode comigo, viro cão.

- Já testemunhei mas a raiva passa, a bondade fica.

- Aprendi com o sofrimento. Uns trancam o coração, outros abrem, o meu se escancarou. Porque encontrei Filipe. Se não tivesse conhecido ele talvez só a ruindade crescesse em mim, engordando na amargura. Para falar a verdade, não sei. Dizem que sou mandona.

- Penso que você já nasceu como é, Mãezinha. Nasceu para ser pastora, cuidar do seu rebanho.

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