Nasceu para ser pastora, cuidar de seu rebanho... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 56
MAIS UM FRAGMENTO DA NARRATIVA, NA QUAL – DURANTE A LONGA VIAGEM DE ÔNIBUS – LEITO DA CAPITAL DE SÂO PAULO À DA
BAÍA – TIETA RECORDA E CONTA EPISÓDIOS DE SUA VIDA À BELA LEONORA CANTARELL
- Quando me dei conta da intenção de Jarbas: queria que eu fizesse a
vida, ficando para ele o ganho, para sustentar sua malandrice, senti uma raiva
subir pelo meu peito, uma sufocação.
O mais difícil foi arrancar o amor cravado
em mim, no meu corpo inteiro. Tinha me apaixonado, estava entregue. Pela
primeira vez não era só gozo de cama, era uma coisa diferente, tão boa.
Jarbas La
Cumparsita subsistia com razoável largueza às custas do
físico de gigolô latino-americano em filme de Hollyood.
Esbelto, corpo de
toureiro, negros cabelos lisos à custa de brilhantina, o bigodinho, as unhas
tratadas, a piteira longa e os olhos, ah!, olhos fatais. Aqui e ali as trabalhadoras reunidas em cooperativa
para sustentar os gastos do galã. Ameaças quando preciso, uns bofetes, La Cumparsita vinha e
recolhia a féria.
Mas para chegar a bom resultado fazia-se necessário que a obrigação
fosse precedida de namoro e conqui sta,
levando a recruta ao delírio: faça de mim o que você qui ser,
meu amor.
Jarbas possuía uma pequena voz agradável, cantava tangos e, por
vezes, dizia-se argentino.
Quando falou de amor a Tieta, declarando-se enrabichado, disposto a
viver com ela para todo o sempre, contando vantagens de dinheiro e importância
social, não foi a perspectiva de largar a vida, ter mando e filho que a jogou
nos braços dele.
- Xodó tão grande, eu não pensava em nada disso, ele não precisava
prometer me tirar da zona. Se me levasse para viver com ele, em casa nossa, eu
de rainha, muito que bem. Mas se qui sesse
apenas vir tarde da noite, após a ocupação, deitar comigo, falar de coisa à toa,
tomar de minha mão, dizer de palavras doces, cantar em meu ouvido me abrindo
por dentro e por fora isso me bastava demais. Cega de amor.
Quando elas estavam presas sem remédio à melosa lábia e inegável
competência nos embates de alcova, então Jarbas decretava a lei, ditava os
itens do regulamento das finanças do casal: para ele, no mínimo setenta por
cento da receita diária, daí para cima. Cafifa de tal status implica em despesas. Empenho
no trabalho, nada de vagabundagem, cadela.
Eu estava desarvorada no auge da paixão, no maior amor e até começara a
acalentar a ideia de morar com ele, largar o ofício, ser mulher direita, já
pensou?
Tudo conversa mole para engabelar. Depois, igual aos tangos que ele
cantava, la cumparsa de misérias sin fin, só então compreendi por quê. Me deu
uma raiva, dele e de mim. Ele nem tinha acabado de falar, eu juntei calça e
paletó, camisa e gravata, atirei tudo no corredor: fora daqui , escroto!
Revolta e fúria Jarbas não esperava. Vez ou outra, um gesto de recusa,
boca e peito em
choradeira. Resistência curta. Logo a lábia, a intimidação, a
violência, em último caso: consolo e como sonhar, minha filha.
- Sonho tanto…
- Quem sonha, paga caro. Bom é querer. Comecei tudo de novo, devo esse
favor a Jarbas La
Cumparsita. Disse para mim mesma: puta posso ser mas de alto
bordo. A partir daí cheguei ao que sou.
- Nunca mais se apaixonou, Mãezinha?
- Paixão daquela, de perder a cabeça, nunca. Gostar, gostei de alguns.
De Filipe, demais.
Mesmo depois de Filipe ter falecido, Tieta não retirara os chinelos e o
pijama do quarto de dormir, como se ele fosse voltar a qualquer momento. Em
hora incerta, como sempre, para o sorriso e o beijo.
Com Filipe foi diferente, durou quase vinte anos. Quando me conheceu,
eu ainda era jovem, esbadanada.
- Era doido por você, Mãezinha.
- Ele encontrava em mim alegria, o descanso, o outro lado da vida.
Também não sei definir meu sentimento. Amor, amizade, gratidão, mistura das
três coisas? Por isso vim nessa viagem, porque ele morreu e fiquei de novo sozinha
como no começo. Para pegar nas duas pontas do novelo e dar um nó, ligar
princípio e fim.
- Fim, Mãezinha? Tão nova, tão bonita, com tantos pretendentes?
- Não falo disso, ainda não apaguei o fogo, será que ele se apaga um
dia? Penso que só com a morte. Quero apenas mergulhar no que fui, saber como
seria se eu tivesse ficado em Agreste em vez de vir para São Paulo.
Quero tomar
banho na Bacia de Catarina, no rio, enterrar os pés na areia das dunas de
Mangue Seco. Só isso. E encher teu peito de ar puro, curar tua anemia.
- Mãezinha, você é tão boa!
- Boa e ruim, quando tenho raiva ninguém pode comigo, viro cão.
- Já testemunhei mas a raiva passa, a bondade fica.
- Aprendi com o sofrimento. Uns trancam o coração, outros abrem, o meu
se escancarou. Porque encontrei Filipe. Se não tivesse conhecido ele talvez só
a ruindade crescesse em mim, engordando na amargura. Para falar a verdade, não
sei. Dizem que sou mandona.
- Penso que você já nasceu como é, Mãezinha. Nasceu para ser pastora,
cuidar do seu rebanho.
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