terça-feira, março 01, 2016

Pacheco Pereira
Há uma certa

tristeza nisto 

tudo...
   








«Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. O país conhece um ritmo depressivo quotidiano. De vez em quando, há um crime hediondo. Uma mãe mata as filhas. 

De vez em quando, é preso alguém importante e respeitável. Um procurador.

De vez em quando, há um pequeno sobressalto porque alguém quer pôr árvores a servir de separadores de uma estrada.

De vez em quando, há um pequeno sobressalto porque alguém quer deitar abaixo umas árvores.

De vez em quando, há uma jovem actriz de telenovelas que tem cancro e, como não sabe viver fora dos holofotes, leva o seu cancro a tudo quanto é capa. As melhoras.

De vez em quando, há mais um caso de violência doméstica. 

De vez em quando, um pescador ou um operário ou um desempregado que arredonda o seu orçamento apanhando bivalves no Tejo morre afogado. De vez em quando.

Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. 

Quase sempre, a todas as horas, há futebol. Discute-se antes, durante, depois. Os canais noticiosos, que deviam acrescentar-se aos canais desportivos, são tanto ou mais desportivos e cada vez menos noticiosos.

Se um começa um painel sobre futebol, nenhum outro se atreve a fazer qualquer outra coisa que não seja outro painel sobre futebol. Nada mobiliza mais os portugueses, em particular como espectadores, telespectadores, ouvintes, conversantes, tertulianos e habitantes de mesas de café, do que a bola.

Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. 

Na política, o país está num impasse, mas parece que não. 

Como acontece por toda a Europa, a impotência do poder político democrático face ao poder económico castrou governos eleitos e submeteu-os a entidades obscuras como os “mercados”, onde o grosso do dinheiro que circula não tem pai nem mãe, a não ser numa caixa de correios das ilhas Caimão. 

O sistema político democrático, a representação partidária tradicional, está numa crise que parece não ter saída. Os partidos do “arco da governação”, ou seja, os que têm o alvará de Bruxelas, do senhor Schauble, da Moody’s e da Fitch, ainda ganham as eleições num ou noutro país, mas ninguém os quer ver a governar outra vez, pelos estragos que fizeram à vida dos homens comuns para salvar a banca, não tendo no fim salvado coisa nenhuma.

Por isso, coligações negativas, com mais ou menos sucesso, surgem em Portugal, na Espanha, na Irlanda, ou fortes partidos radicais, nacionais e populistas, na França, na Grécia, na Polónia, na Hungria.

Ou partidos como o Labour reencontram um mundo do “trabalhismo” que se decretara ser arcaico. São tudo partidos muito diferentes, uns à esquerda, outros à direita, mas têm uma coisa em comum: contestam o poder transnacional da União Europeia, e o pensamento único em economia que daí emana por diktat.

Uns mais o primeiro, outros mais o segundo. Contestam a promiscuidade que juntou socialistas com partidos do PPE, numa aliança que tornou o “não há alternativa” na ideologia autoritária dos nossos dias.

Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. 

Temos um Governo único na Europa, sem precedente por cá, sem paralelo por lá. Mas mesmo isso normalizamos, até porque como eles não estão muito entusiasmados com o feito, também não entusiasmam ninguém.

O PS, apesar da vaga de insultos, de que se “descaracterizou”, traiu as suas origens, abandonou o papel de resistente ao PREC, “radicalizou-se”, é “terceiro-mundista”, etc., etc., é, imagine-se!, o mesmo de sempre.

O BE está demasiado contente consigo próprio para olhar bem para o que se está a passar. Dedica-se todos os dias a uma causa nova, uma nova reivindicação, uma nova reclamação, sem sequer dedicar qualquer esforço a consolidar as que fez. 

Acha que está num momento alto de “luta” quando a luta, séria, dura, árdua, lhe passa ao lado. O PCP sabe que precisa de mudar, mas não sabe como.

Há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são. 

O PSD referve de raiva, como se vê quando Passos Coelho abre a boca. Tornou-se mais revanchista do que o CDS, e não tem outra estratégia que não seja garantir que haja eleições a curto prazo. Já teve melhores condições para as ganhar, hoje cada dia tem menos.

A metamorfose “social-democrata” parece a toda a gente como oportunista, a começar pelos neoliberais que Passos reuniu à sua volta, para quem o PSD é um instrumento de acesso ao poder, mas que gostam mais do CDS.» 
   
Autor:
Pacheco Pereira.

Nota - Pacheco Pereira não falha na sua análise. Ouço-o todas as semanas, desvinculado de interesses partidários, profundo conhecedor da realidade política e Europeia, na sua qualidade de historiador, ele diz o que a mim me vai na alma e por isso me dói porque sinto que é verdade, uma verdade que pode levar à desagregação da Europa.

"A impotência do poder político democrático face ao poder económico castrou governos eleitos e submeteu-os a entidades obscuras como os “mercados”, onde o grosso do dinheiro que circula não tem pai nem mãe, a não ser numa caixa de correios das ilhas Caimão". 


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