Casas do Largo da Chã - da-.Eira |
A CONCAVADA
Aldeia dos meus
avós.
Ontem, espaço
de vivos!
... hoje de fantasmas.
Se sinto agora,
a caminho dos 78 anos, alguma dificuldade em envelhecer devo-o à aldeia dos
meus avós… Interno num colégio, passava ali as férias, na liberdade de uma
aldeia onde quase todos eram tios e primos.
Tudo o que então
podia fazer a minha felicidade de rapaz ali estava: o Largo da Chã – da – Eira,
onde dava xutos na bola contra a parede da velha capela, o rio Tejo que
passava a quin ze minutos de caminho,
com direito a um areal, local ideal para piqueniques, banhos e pescarias, e as
longas tardes de verão para conversas amenas ou jogo de cartas…
Há anos voltei à
aldeia dos meus avós com o meu sobrinho e de novo percorri todas aquelas ruas:
a fonte, onde as mulheres iam buscar água para beber, bilha à cabeça, pequenos
largos, recantos, o local das tabernas, onde na década de 50, ouvíamos os
relatos de Hóquei em Patins na inesquecível voz do Artur Agostinho, num velho
rádio ligado a uma bateria porque electricidade era luxo que ainda não havia.
Parava para
olhar todos aqueles lugares com os olhos de muitos anos atrás... e eles até
pareciam que falavam comigo na voz das pessoas com quem eu, em jovem, ali me
cruzava, cada uma com o seu passo característico nas rotinas próprias da hora
do dia.
Para mim, era já
uma enorme lista de gente a que o meu sobrinho, ao meu lado, não tinha acesso
por não serem ainda do tempo dele .
Ali estavam
elas, não faltava nenhuma. Até parecia terem sido avisadas por alguém da minha
visita:
- … Enxada
às costas, tamancos nos pés, calças arregaçadas, o meu tio Firmino lá vai regar
a horta, sempre composto, muito educado, bem apresentado, não fosse ele
alfaiate:
- “O Sr. Lopes
(o meu pai era António Lopes) arruma à esquerda ou à direita?” -
perguntava-me ele, meio ajoelhado aos meus pés, metro esticado, a tirar
as medidas para as calças.
Eu não teria, então,
mais que catorze ou qui nze anos e o meu tio Firmino foi a
primeira pessoa que me tratou por senhor, o que me deixava um pouco encabelado…
eu era apenas um rapaz, um menino já crescido, mas o meu tio Firmino era um
perfeito cavalheiro, muito educado.
A minha tia Joaqui na, vinha à porta e eu dava-lhe um beijinho como
era próprio da educação das crianças da cidade, e ela perguntava-me:
- Como estás?
Eram pessoas de
expressão serena, palavras calmas, de vidas rotineiras, ao sabor e ritmo de uma
aldeia da província que há umas dezenas de anos atrás tinha sido atravessada
pela estrada, primeiro de macadame, depois alcatroada, que ia para a Beira –Baixa,
Castelo Branco, Covilhã, Serra da Estrela, o interior do país, e que na hora da
passagem da Camioneta da Carreira ganhava alguma agitação.
A Camioneta
parava, exactamente, no Largo da Chã-da-Eira para despejar passageiros, fazer a
entrega do saco do Correio e seguir viagem até ao Gavião, uns qui nze a vinte qui lómetros à frente, no limite do
Distrito.
O saco do
Correio era deixado na loja da minha prima Clementina responsável pela entrega
das cartas e ainda pelo único Telefone que era público.
Era um espaço social
que ganhava vida às seis horas da tarde com a chegada da camioneta e dos
passageiros.
As pessoas, à
falta do que fazer, encontravam-se ali para ver quem chegava, dar dois dedos de
conversa e de coscuvilhice e eu… principalmente, para ver a Bia, moça mais
velha, filha do Cabo de Ordens da aldeia, que estudava na Faculdade de Letras
em Lisboa, única universitária que havia por aquelas paragens e que não nos
passava cartão, a nós, miúdos do liceu…
Mas era difícil fugir
ao seu poder de atracção, sempre muito bem arranjada, bonita, lábios pintados
rigorosamente de um encarnado vivo que lhe ia a matar com o seu penteado de
cabelos negros.
Assuntos arrumados, a
camioneta partia e lá ia a Bia, estrada fora, de regresso a casa, no seu passo
elegante como se desfilasse numa "passerelle" mas melhor, muito
melhor, sem artificialismos parvos.
Ela sabia bem que nos
deixava a nós, rapazes, de olhar pendurado no seu corpo ondulante até que,
finalmente, desaparecia na curva.
Voltaria amanhã ou no
meu próximo sonho…
Tudo isto são imagens
tão fortes na minha memória que embora sendo longínquas no tempo de uma vida,
permanecem de tal forma frescas e recentes que eu continuo a ver-me, passados
sessenta anos, a passar férias na aldeia
dos meus avós…
Por isso, me custa a
envelhecer… compreendem?
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