Voltar a viver de mansinho... |
Recordar,
é voltar
a viver de
a viver de
mansinho...
Há
dois momentos da vida em que é quase inevitável sentirmos problemas de solidão.
O primeiro, quando na juventude, já crescidos, naquela frase de transição para
homem, nos apercebemos de que a vida a sério nos espera, que para trás ficaram
os cuidados, apoios e afectos que nos rodearam como se nos fossem devidos dando
depois lugar a um medo que mais parece solidão face a um futuro desconhecido
que estava já aí.
O
outro momento em que voltamos a sentir solidão é quando nos apercebemos que a
vida começa a despedir-se de nós, e os outros também, porque deixamos de contar,
já não somos precisos, e aí vêm a solidão quando as saudades e recordações nos
preenchem o pensamento como campainhas a tocar alertas para o fim que se
aproxima.
Também,
neste caso, é um medo revestido de solidão porque todos se afastaram, começaram
a ir embora e nós ficamos cada vez mais sós, aguardando a vez…
Há
um ciclo biológico que se cumpre, inexoravelmente, com frieza, como se não tivéssemos
sentimentos… ao mesmo ritmo, com idêntica cadência num desprezo total pelo
nosso mundo do de afectos.
Seria
justo que esse ritmo abrandasse, cedesse um pouco quando estamos a ser felizes,
em paz com a vida, ou não é a felicidade para nós, homens e mulheres deste
planeta, o grande e principal desígnio?
De
resto, toda ela decorre num cenário de amores de muitas tonalidades, umas
fortes e arrebatadoras, outras calmas e tépidas roçando, por vezes, uma
aparente indiferença.
Quando,
pelos meus catorze, qui nze anos, entrei num Colégio interno, quase em
regime de clausura, com tantos colegas à minha volta, surpreendentemente
senti-me só pela mesma razão que uma árvore isolada me acolhe e protege mas a
floresta me amedronta e retrai.
Tanta
vida eufórica à minha volta cavou em mim um vazio… não havia afectos, o
relacionamento era de disputas, conflitos, alianças, quando muito algumas
simpatias também provocadas pelo mesmo isolamento.
Em
meu socorro veio a comunidade da língua portuguesa na forma de cartas em
envelopes debroados a amarelo e verde, as cores do Brasil, “meu irmão”,
enviadas por uma jovem da minha idade da cidade de Campinas, que aceitara
corresponder-se comigo...
Durante
todo esse período de alguns anos, fechado no Colégio, com os meus pais divorciados
e desavindos, foi a Dulce, a árvore a que me acolhi no seio daquela floresta de
colegas “mal comportados” e me quebrou a solidão.
Esperava
as suas cartas com uma ansiedade que me queimava o coração. O Director, o velho
mas rijo professor Raul Lopes, encaminhava-se para os degraus da escada com o
maço das cartas debaixo do braço e virava-se para os alunos que aguardavam a
leitura dos nomes nos sobrescritos.
Eu
não precisava de ouvir, ninguém me escrevia, bastava vislumbrar no conjunto das
cartas o envelope debruado a amarelo e verde, vindo do Brasil. Alegrava-se-me a
alma, eufórica, quando o via e ficava desejando ser o último para prolongar o
prazer de o receber.
Depois
do jantar, na sala de aulas para o estudo, disfarçava o papel de carta de avião
dentro do caderno, debruçava-me sobre a carteira e no tempo que se seguia não
havia aluno mais concentrado, nem minutos que passassem mais depressa… em toda
a minha vida aqueles viriam a ser os momentos mais íntimos, mais sonhados, de
maior comunhão…
Nenhuma
barreira seria capaz de me segurar na cadeira daquela sala, dentro daquelas
paredes, naquele edifício de onde eu voava até junto de uma jovem loira,
cabelos compridos, escorrendo pelas costas, que tocava violão para eu ouvir, e
que imaginava olhando-me nos olhos, bebendo as minhas palavras.
Como
eu me sentia?… - não sei explicar se era êxtase, felicidade, eu só tinha qui nze
anos...!
O
que ia naquelas cartas eram bocadinhos de mim mesmo, não eram palavras, era eu
próprio… A Dulce percebia isso, os jovens da mesma geração entendem-se como
almas gémeas.
Como
teria sido se estivéssemos um ao pé do outro? Não seria, de certo, com tanta
intensidade…
Aquela
distância toda, aquele oceano Atlântico a separar-nos, o destino, cada um em
seu lado, partes tão diferentes do mundo, tão longe e ainda tão meninos a darem
asas à imaginação...
Como
é poderoso o amor platónico vivido dentro de nós!
Como
foi lindo!... Não voltei a ter outros momentos assim em toda a minha vida. A
capacidade para sonhar aos qui nze anos quando se está só e carente não tem
limites, e esta jovem, que eu nunca conheci pessoalmente, preencheu um troço da
minha vida em que eu não tinha mais ninguém, e ela foi, na realidade, a grande
namorada da minha vida.
Não
sei, Dulce, se terás sido feliz... espero e desejo que sim! A mensagem que capt ei
ao longo dos anos em que nos escrevemos, mais de quatro, provinha de uma pessoa
doce e boa.
Tantos
anos passaram… uma vida já longa e, no entanto, tudo está fresco na minha
memória como se tivesse sido ontem, tal como os velhos edifícios de granito que
o tempo não consegue beliscar.
É
isso, pedra de granito, a natureza de algumas recordações que nos acompanham
toda a vida, teimosas, dizendo-nos silenciosas: - “só saio quando te fores
embora...”
Nunca te zangues com a sorte, mesmo quando ela te parece e
é adversa... vais precisar dela toda a vida. Na verdade, tu pouco comandas, mas
procura ser hábil e inteligente no teu relacionamento com ela...
Esforça-te para tirares o melhor partido do
relacionamento. Em 1973, sai de Moçambique com a roupa que tinha vestida. Tudo,
mas tudo lá ficava, incluindo o pequeno almoço servido em cima da mesa da sala
de jantar...
Eram esses os ventos da altura, não forcei nada... Depois sopraram outros, para mais lados e levaram-me com eles, a mim e a milhares de outros compatriotas
da minha geração, cada um para seu lado....
Nunca disse mal da minha sorte, limitei-me a estar com ela
dentro da tal aliança que temos de estabelecer. Ela foi sempre a minha esperança. Saber viver é saber estar nessa
aliança e não perder a esperança...
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