Hoje é Domingo
(Na minha cidade de Santarém em 11/8/16)
Os pobrezinhos. Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos
nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das
minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos
meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de
roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência
descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para
poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino
natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem
de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à
missa, bapt izarem os filhos, não
andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem
pertenciam.
Parece que ainda estou a ver um homem de sumpt uosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba,
responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em
oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta
gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de
bolo-rei, saqui nhos de amêndoas e
outras delícias equi valentes, e
deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam,
isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e
junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos,
peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa
Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre.
Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as
minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos
pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto - esta gente,
coitada, não tem noção do dinheiro... de forma de deletéria e
irresponsável.
O pobre da minha tia Carlota, por exemplo, foi proibido de
entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma
recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico:
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho... o atrevido lhe
respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeo.
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem
magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características
insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim e eu
entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como
ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha
avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as
quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um
sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um
sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me
informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos
pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou ópt imo
e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a
minha mãe, espirrando, me ordenasse:
- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar e eu
fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto
mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da
Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que
consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres
inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio
que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma
gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de
pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"
António Lobo Antunes
(Livro de Crónicas)
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