terça-feira, setembro 27, 2016

Miguel Sousa Tavares
Onde está o meu ouro de 
Minas? (2011)










Onde está o meu ouro de Minas?

A relação entre brasileiros e portugueses tem uma história por vezes mal contada e com equívocos à mistura.
 Miguel Sousa Tavares, jornalista, licenciado em Direito, advogado, comentador político na televisão e na imprensa, é uma voz independente e desassombrada, como foi a de seu pai, Francisco Sousa Tavares, também ele advogado e de Sophia de Mello Bryner, escritora e uma das maiores poetisas da língua portuguesa. Este texto é esclarecedor, a história e os factos são o que são e o Miguel Sousa Tavares fala deles sem qualquer espécie de complexos

ONDE ESTÁ O MEU OURO DE MINAS? 



(Graças ao D. João V, sobretudo, ainda hoje nos tomam por ladrões no Brasil.) 

Estamos a assistir ao regresso cada vez mais acentuado dos imigrantes brasileiros ao Brasil. Eles trouxeram a esta terra de gente macambúzia e eternamente insatisfeita uma delicadeza e uma alegria que só nos fizeram bem e que vão deixar saudades. E também acho que quando esta leva de imigrantes do Brasil aqui começou a chegar, fugindo de uma situação económica negra para vir encontrar um país então no apogeu das esperança e das ilusões (o tal "oásis", que viria a secar), foram recebidos com uma altivez e uma arrogância de novos-ricos que só as andanças da história podiam, em parte, desculpar. De facto, as relações Portugal-Brasil, nos últimos 150 anos, são um interminável jogo de ioiô, em que, quando um está em baixo, o outro está em cima, e vice-versa, com ciclos de emigração, económica ou política, cruzados ao sabor da situação interna de cada um de nós. 

Dir-se-ia então que o desdém e a fútil superioridade com que aqui recebemos esses brasileiros que vieram ocupar os trabalhos que os portugueses já não queriam foi uma espécie de ajuste de contas tardio com a forma como os brasileiros receberam os portugueses que para lá foram em massa desde o último quartel do Séc. XIX até às primeiras décadas do Séc. XX. 
Injustiça paga com injustiça: nós ficamos agora a dever aos brasileiros grande parte da construção das auto-estradas, hospitais e Expôs, com que, imbecilmente, imaginávamos ter conquistado para sempre a modernidade e o progresso; e antes, eles ficaram a dever-nos os ciclos do café e da borracha da Amazónia, que não teriam sido possíveis, por ausência de mão-de-obra, sem a impressionante emigração portuguesa – que teve como contrapartida, a ruína do interior de Portugal. 


No imaginário do povo brasileiro, o português ficou para sempre associado à figura do padeiro de esquina de S. Paulo e do Rio (ainda hoje figura obrigatória nas novelas da globo, com um actor português a desempenhar o papel) 

E, quando a inflação subia aos níveis estratosféricos a que às vezes sobe no Brasil, o padeiro português da esquina era o alvo imediato da raiva popular: como aceitar que os tipos que tinham desembarcado no Brasil descalços e vagabundos, se tivessem tornado em menos de uma geração, exploradores do povo que os acolhera? 


Tivessem eles consultado os livros de bordo desses navios que trouxeram essa leva de portugueses (todos eles na flor da idade, dilacerados pela perspectiva de não voltarem a ver a casa e a família, mas com uma vontade incrível de acrescentar mais Brasil ao Brasil), tivessem sabido das condições desumanas em que viveram e trabalharam nos cafezais do Vale do Paraíba e nos seringais da Amazónia, e talvez tivessem outro olhar, mais justo, sobre essa espécie de irmãos mal - quistos. 

Hoje, fizemos um longo caminho, cá e lá. Um caminho feito muito pouco pelos políticos com as suas eternas juras de amor mútuo, mas sobretudo pelos intelectuais e pelas classes cultas – através da música, do cinema, da literatura. Já há alguns milhões de brasileiros que sabem que os portugueses não são todos merceeiros, que os homens não têm todos um metro e meio e as mulheres não têm todas bigode. 


Pessoalmente, considero o Brasil a minha segunda pátria. Não porque tenha sido, em parte, um país inventado pelos portugueses ou porque lá se fale a minha língua mas porque acho o Brasil – feito por portugueses, índios, africanos, brasileiros e também italianos ou japoneses – um país único no mundo, absolutamente diferente de todos e extraordinário.

Está longe de ser um país perfeito e, muito pelo contrário, é um país excessivo em tudo, no mal e no bem, nas qualidades e defeitos, e talvez seja isso que o fez tão fascinante. Os países que amamos são um pouco como as pessoas que amamos e eu não acho interessantes os países perfeitos e desconfio sempre das pessoas perfeitas. 


É a esta perspectiva que me irrita muitíssimo as críticas mútuas redutoras com que tantos portugueses e brasileiros se entretêm, como se com tanta mistura de sangue e de sémen, tanta aventura e tanta desgraça em que andámos misturados um com o outro, os vícios e fraquezas de cada um nunca tivessem passado ao outro. 

Como português (ou como luso-brasileiro que fui até 1822), irrita-me aquilo que considero uma tentativa de falsificação histórica de muitos historiadores brasileiros: a ideia de que no Brasil, e durante 322 anos, tudo o que correu mal, todas as vilanias, toda a exploração, todas as injustiças e mal governo, foi obra dos portugueses; e tudo o que correu bem foi obra dos brasileiros. Como se os brasileiros não tivessem sido também portugueses e os portugueses não tivessem também sido brasileiros até 1822! ) 

Há excepções, claro (Joaquim Nabuco, por exemplo), mas o tom geral da narrativa é de tal ordem que apetece perguntar como é que, até à independência (concedida por um soberano português, se distinguiam os portugueses do Brasil dos brasileiros do Brasil? 


Por exemplo, o grande sucesso editorial brasileiro dos últimos tempos, o “1808”, de Laurentino Gomes, sobre a chegada da corte de D. João VI ao Brasil: um panfleto doentiamente anti -  português, sem a menor preocupação de enquadrar a história no seu contexto e onde só interessa o lado negro da aventura joanina. Parece, segundo o autor, que com a estada da corte portuguesa, os “brasileiros” descobriram, estupefactos, a porcaria urbana, a corrupção, o compadrio e o desgoverno (tudo coisas que, como se sabe, foram extintas em todo o Brasil há muito). 

Ora, todos sabemos que D. João VI era um atrasado mental e que a Dª Carlota Joaquina era uma ninfomaníaca sevilhana permanentemente ocupada a conspirar contra o próprio rei e marido. Mas isso não era uma especialidade portuguesa, mas um dado corrente nas cortes europeias, minadas pela consanguinidade e pelas regras arbitrárias próprias dos sistemas monarcas da época. 

Todavia, e conforme demonstram estudos recentes, D. João VI foi bem melhor soberano no Brasil do que foi em Portugal. Reformou a cidade do Rio de alto a baixo, abriu os portos brasileiros ao comércio internacional e instalou um verdadeiro Estado – que levou daqui por inteiro – onde antes apenas havia capitanias e mandantes locais. 

O seu grande erro foi ter regressado, em vez de ter tido a visão de perceber que a capital do império deveria ser o Brasil e não


Recentemente, numa viagem ao coração do sertão brasileiro (Goiás e Tocantins), o mais novo Estado da União, terra descoberta pelo célebre bandeirante português “Ahanguera” e onde se continuou a corrida ao ouro, (depois de exauridas as levadas de Minas), comprei um livro sobre a história da corrida ao ouro no Brasil, em finais do Séc. XVIII e princípios do XIX. 

E, no que nos diz respeito, a coisa resume-se assim: o ouro foi descoberto a mando insistente da Corte de Lisboa (como se no contexto histórico dos impérios, fosse estranho a capital querer descobrir e explorar as riquezas da colónia), pelos heróicos bandeirantes, que eram, quase todos, brasileiros de São Paulo.

Quem escravizou os índios e os negros trazidos de África para as minas foram os portugueses, não os brasileiros; a Corte (isto é Portugal) roubou sem pudor, o ouro do Brasil, exigindo o célebre “quinto” – que o autor reconhece, todavia, que nunca conseguiu cobrar, nem próximo – (um quinto, 20%; tomáramos nós que hoje os Estados se contentassem em cobrar-nos 20% de impostos sobre a riqueza produzida!); quem deixou que as minas se esgotassem por falta de técnicas de exploração adequada, como viria depois a acontecer com o café, no Vale de Paraíba, já o Brasil era independente há muito), foi a Corte de Lisboa, a 10.000 Km de distância, e não os donos das explorações, que, por acaso, eram brasileiros;

-  E quem, finalmente aproveitou o ouro do Brasil foi Portugal (que usou o que recebeu para, já então, pagar a dívida externa) e não o Brasil que ficou com 90% dele, usando-o para tornar São Paulo a cidade mais rica da América do Sul e dar berço ao próprio Estado de Minas Gerais (cuja tentativa de secessão, a “Inconfidência Mineira” foi sufocada por Portugal, mas a benefício do Brasil – até hoje.) 

De facto, não havia necessidade. Graças ao D. João V, sobretudo, ainda hoje nos tomam por ladrões no Brasil. E onde está o meu ouro de Minas? 


Miguel Sousa Tavares 2011


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