quinta-feira, setembro 08, 2016

O polícia, o motorista e

o ódio












Fevereiro de 2015:

- “ Se eu mandasse vocês seriam todos exterminados. Não sabem 0 que eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de merda.” - Terá dito um agente da polícia da Esquadra de Alfragide na Cova da Moura, em Lisboa.


Ano de 1963:

- Destacamento militar do Lumbala, distrito do Cazombo, no Leste de Angola, perto da fronteira com a Zâmbia.

- “Meu Alferes, está ali um motorista de camião que pede para lhe vendermos pão.”

- “Diz-lhe que aqui não se vende pão, isto é um quartel e não uma padaria. Põe mais um prato na mesa e convida-o para almoçar comigo.”

A mesa estava colocada cá fora, em frente da porta do meu quarto num edifício rectangular, repartido por dentro e com uma cobertura de zinco onde a tropa estava instalada.

A anterior guarnição construiu-o, a minha melhorou-o substancialmente - viva a gente do Norte de Portugal! -  dotando-o com casa de banho e chuveiros, apesar do Zambeze passar ali a dois passos e ter sido, nos primeiros tempos, enquanto ele não encheu na época das chuvas, o local ideal dos nossos banhos colectivos, uma espécie de recreio dentro de água.

No espaço do quartel as crianças luenas, rapazinhos, movimentavam-se à vontade, sentiam-se bem junto dos soldados a quem, muitos deles, prestavam serviços de lavagem da roupa.

Comiam connosco do rancho, frequentavam uma escola improvisada por um Cabo, o professor, que eles levavam muito a sério.

Em certo momento do almoço, o camionista, homem de meia-idade, calejado das estradas infindáveis de terra batida, mãos enormes, virou-se na cadeira, apontou uma hipotética metralhadora ás crianças e disse, olhar frio:  “matava-as a todas.”

Levantei-me da mesa, virei-lhe as costas, nunca mais o vi...

O coração de certos homens está cheio de ódio: o do polícia da Esquadra da Cova da Moura, um bairro social problemático de Lisboa, e o camionista das "estradas do fim-do-mundo" do Leste de Angola.

Um ódio que é real e radica num passado longínquo de tribos inimigas, rivais, quando ainda nem havia pretos ou brancos. 

À minha volta, naquele quartel improvisado, uns trinta militares, meus concidadãos, conviviam com aquelas crianças, naturalmente, alimentavam-nas, ensinavam-nas a ler e defendê-las-iam se as suas vidas estivessem em perigo.

Na Esquadra da Cova da Moura, bairro problemático, a voz daquele polícia era isolada.

De certeza não era aquela a cultura e o sentimento da generalidade dos seus colegas e não podemos tomar a nuvem por Juno.

Os camionistas das estradas da Angola do tempo do colonialismo foram autênticos heróis e a vida de cada um deles dava um livro de aventuras.

Conheci aquelas estradas, fiz muitos quilómetros nelas, esburacadas e ensopadas, a apanhar “pontapés nas costas” e conheci também alguns motoristas de camião.

O primeiro deles, tinha eu chegado há pouco meses ao Norte de Angola, ao Úcua. Nem o cheguei a ver, estava reduzido a um tição, junto aos pedais da camioneta que tinha sido atacada e incendiada.

O ódio não escolhe raças nem cor: é um fogo que arde cá dentro.

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