Passou-se comigo em
1963, já lá vão 53 anos e o cenário é o palco da guerra colonial portuguesa, no
norte de Angola.
A operação
desenrolou-se tendo como base e ponto de partida e de chegada, uma fazenda de
café, Maria Fernanda de seu nome, e nela participaram tropa que estava sedeada
na própria fazenda e outras, entre elas o meu Grupo de Combate, vindo de Luanda.
A saída era de madrugada e os itinerários diferentes para
cada um dos Grupos e o objectivo era “limpeza” da zona, coisa perfeitamente
delirante tendo em conta a dimensão da área, a riqueza da vegetação e o
desconhecimento e pouco à vontade que possuíamos quando comparados com o das
populações que faziam da floresta a sua casa.
Fomos largados de viaturas naqui lo a que eles chamavam “picada”, trilhos de
estradas de “terra batida”que já tinham deixado de o ser porque quando não
utilizadas rapidamente são invadidos pelo capim e restante vegetação que
literalmente se apodera delas em pouco tempo.
Deveríamos caminhar para Norte até
encontrar uma outra picada na perpendicular do sentido que levávamos e onde as
viaturas nos aguardariam para nos reconduzirem à fazenda Maria Fernanda.
Com o meu Grupo ia um outro que
pertencia à guarnição militar da própria fazenda e que era comandado por um
Alferes licenciado em medicina mas que não tendo ainda feito o estágio
hospitalar cumpria a comissão como alferes de Infantaria.
O seu estado de espírito não podia
ser pior. Estava deprimido e era completa a saturação e o desinteresse que
manifestava por tudo quanto o rodeava.
Antes de partirmos acercou-se de mim
e disse-me:
- “Não quero saber disto para nada,
você comanda e eu vou ser apenas mais um soldado”… não mais o vi nem tão pouco
dei pela sua presença…sumiu-se!
A operação decorreu num vale profundo
de encostas bem acentuadas que se prolongava no sentido sul/norte e que tinham
sido desmatadas até uma certa altura para aproveitarem o terreno na parte mais
baixa e fértil para a agricultura de subsistência das
populações que se tinham subtraído ao controle das autoridades portuguesas e
viviam refugiadas no mato. Alguns deles, com armas, teriam recebido instrução
militar e atacavam as tropas portuguesas nos acampamentos e nas picadas com
minas anti-carro e emboscadas.
Começamos a deslocação para norte,
pela encosta do lado esquerdo do vale, na orla do mato que confinava com o terreno limpo e encobertos pela vegetação da floresta.
Era-nos assim relativamente fácil
observar o que se passava à nossa direita, mais abaixo, sem que o contrário
fosse possível. Caminhávamos uns atrás dos outros numa fila que se prolongava
por dezenas de metros e durante algum tempo nada aconteceu.
De repente ouvi um tiro, depois mais
tiros, um alvoroço, alguns soldados descem a correr a encosta, atravessam o
vale e perseguem pessoas que fogem em desespero subindo a encosta do outro
lado. Regressam passado pouco tempo os que tinham saído em perseguição e a
calma restabelece-se progressivamente…o drama estava consumado.
Uma jovem tinha sido morta por uma
bala disparada de muito longe por um soldado. A bala entrara pelas costas e
atravessara-lhe o coração causando-lhe morte instantânea. Um outro soldado
cortou-lhe um dedo para trazer de recordação como troféu de guerra e eu… tive
uma enorme vontade de fugir dali, desaparecer…eu que era o comandante daquela
tropa e nem sequer podia recriminar o soldado que matou a jovem porque ele
apenas cumprira as instruções do Quartel General de matar tudo o que mexesse, a
tal “limpeza” a que já me referi.
Não conheci bem este soldado no
sentido de que não tive com ele grande convivência. Era da minha Companhia mas
não do meu Grupo de Combate. Tinha um aspecto possante, bem constituído
fisicamente, de alcunha “o boi”, proveniente, de certo, de uma das nossas
muitas aldeias como a maioria deles e no máximo teria a escola primária.
- Dizer-lhe que a utilização de uma
arma, mesmo numa situação de guerra, é sempre da responsabilidade de quem a
utiliza, faria algum sentido para ele?
- Manifestar-lhe o meu desagrado não
seria estabelecer a confusão na sua cabeça?
- Perguntar-lhe se ele gostaria que
fossem à sua aldeia e lhe matassem a irmã ou a namorada quando ela estivesse
simplesmente a trabalhar no campo, era justo?
Do outro soldado, do que cortou o
dedo do cadáver da jovem para recordação, não procurei saber na altura quem
era, sentia demasiada vergonha, por mim e por ele.
Quarenta e cinco anos mais tarde, de
cabeça baixa, envergonhado e arrependido disse-me em voz baixa…“eu era um
garoto…” mas não seríamos todos nós uns garotos?
Foram para mim momentos de pânico e
desorientação, não queria estar ali nem mais um minuto e por isso dei
instruções para que continuássemos o nosso trajecto o mais rapidamente
possível.
Atacar civis, pessoas indefesas,
surpreendendo-as, não era guerra nenhuma era um morticínio, um assassinato.
Em todas as anteriores operações,
cansado daquelas marchas, do calor, do ar saturado de humidade que não nos
deixava respirar, do peso da espingarda, cartucheiras, bornal, capa de
borracha, cantil que depressa esvaziava… quando à noite me deixava cair o que
me esperava era sempre um sono profundo e descansado tendo por almofada o meu
bornal e por lençóis a capa de borracha que nos protegia da chuva.
Sempre?... não! Naquela noite quase
não preguei olho, os gritos de dor dos familiares da jovem morta ecoavam por
todo aquele vale.
Eram gritos lancinantes, doridos,
acusatórios e o silêncio que se lhes seguia parecia total, como se os bichos da
floresta tivessem decidido calar-se nessa noite para eu melhor os poder ouvir.
Noite irrepetível, perseguido por gritos que sentia serem ameaçadores de
pessoas que expressavam a sua dor mas também a sua raiva, o seu justo desejo de
vingança.
No outro dia, ainda o sol não nascera
e já nos tínhamos posto em marcha que só não era forçada porque as condições do
terreno e da vegetação não o permitia.
Era ténue a minha esperança de
conseguir escapar à emboscada que de certo me esperaria em qualquer ponto do
percurso. Quantos iríamos morrer? Os guerrilheiros não podiam permitir que a
tropa fosse ao seu terreno, que era a sua casa, matar uma jovem do seu povo da
mesma forma que se caça uma gazela e saísse do emaranhado de toda aquela
vegetação com total impunidade. Era para eles uma questão de honra como seria para
mim no lugar deles.
Por isso, começamos a andar ainda
quase de noite e continuávamos a apressar o andamento na esperança de sair dali
depressa antes que eles tivessem tempo de armar a emboscada.
Já era bem de dia quando o vale se
bifurcou. Eu devia continuar em frente, sempre para norte, sempre por aquele
vale. O Quartel-General sabia bem que era ao longo dele que se encontravam as
populações e por isso o itinerário era aquele e não outro.
Mas chegados àquela bifurcação decidi
desrespeitar as ordens, seguir pelo vale da esquerda, de vegetação muito mais
densa de tal forma que era praticamente impossível montar ali uma emboscada ou
o que quer que fosse e em distância parecia-me encurtar caminho.
Disse aos homens para encherem os
cantis num fio de água que por ali passava e foi nesse momento, com eles
agachados a recolherem a água e eu em pé, que o tiroteio começou.
Eles pensaram exactamente aqui lo que eu iria fazer, aquele era o sítio certo
para a emboscada, antes de fugir pelo vale da esquerda que tendo uma vegetação
tão densa não permitiria qualquer acção militar.
Entretanto, os tiros prosseguiam e eu
continuava de pé, indiferente, num aparente e ilusório desafio: …"vá,
estou aqui , de pé, acertem-me se
forem capazes, vinguem a vossa jovem que nós matámos…”
- “Meu alferes, saia daí, esconda-se,
que eles matam-no!”… gritou-me o Maia, (já falecido) deitado atrás de um tronco
de uma árvore caída no terreno.
Dirigi-me para junto dele,
normalmente, com o passo de quem muda de mesa na esplanada do café e a
inconsciência do perigo própria de quem não nasceu para aquelas coisas. Ainda
hoje recordo não ter tido naqueles momento nenhuma sensação de medo...
"aquelas balas não eram para mim... eu apenas estava assistindo a um filme
de aventuras no cinema Politeama..."
-“Meu
alferes, as balas aos seus pés até levantavam pó!” - disse-me o Maia quando me
deitei ao seu lado.
Entretanto, alguém gritou que eles
estavam em cima das árvores a fazerem fogo para cima de nós e logo tudo quanto
tinha folhas e ramos foi varrido pelas rajadas das espingardas automáticas G3.
Nitidamente, o efeito de surpresa
tinha passado e o nosso maior poder de fogo estava a impor-se.
Chamei o homem da bazuca, o “Capela”, e mandei-o disparar duas granadas na esperança de que alguma delas conseguisse passar por entre as árvores e explodisse contra a outra encosta do outro lado do vale.
A primeira rebentou logo à nossa
frente, quase por cima das nossas cabeças, deu cabo de uma árvore que estava
próxima e “choveram” bocadinhos de madeira para cima de nós.
Gritei-lhe: -
“É pá, levanta o cano dessa merda para ver se consegues fazer a granada passar
por cima das árvores!
Inspirado pelos “deuses da guerra”, o
homem da bazuca, à segunda tentativa, conseguiu que a granada passasse por
entre as árvores, as sobrevoasse e estourasse contra a encosta do vale, em
frente, lá no outro lado.
O efeito ultrapassou tudo o que se
poderia esperar: o estrondo do rebentamento multiplicado vezes sem conta pelo
eco, possível pelo facto das encostas serem suficientemente íngremes e próximas
a funcionarem como paredes em frente uma da outra, parecia coisa do apocalipse.
De repente, “vinte exércitos” tinham
entrado em cena e accionado os seus dispositivos de lançamento de granadas.
Quando, finalmente, os ecos dos rebentamentos se deixaram de ouvir, a guerra
tinha acabado, a calma e o silêncio estabeleceram-se como se nada ali tivesse
acontecido.
O “Capela” e a bazuca tinham acabado
de ganhar a guerra…
Levantá-mo-nos lentamente olhando e
perguntando uns pelos outros e inacreditavelmente estavam todos bem, apenas um
sargento enfermeiro, de mais idade e pesado, tinha desmaiado de comoção mas
estava a recuperar.
Tiveram a oportunidade de uma justa
vingança e não a aproveitaram. Dispararam de surpresa de cima das árvores a
distâncias que não eram muito grandes e poderiam ter-nos causado inúmeras
baixas…éramos mais de cinquenta alvos.
Em vez disso, não acertaram em
ninguém, a jovem não foi vingada… mas eles tentaram, cumpriram a sua obrigação,
provavelmente com feridos ou mortos pois foram vistos alguns a atirarem-se das
árvores, não sabemos se atingidos ou não.
A continuação da marcha foi penosa,
momentos houve em que a vegetação de tão densa que era aprisionava-nos de
pernas e braços, obrigando a recuos e avanços que eram uma autêntica luta
contra o emaranhado dos ramos.
Finalmente, exaustos de cansaço, fome
e sede porque no meio de toda aquela confusão e na pressa de abandonar o local
nem enchemos os cantis de água, lá chegámos ao destino, já de noite mas vivos e
sem feridos.
Aqui lo
que a cada um de nós nos separou da morte nesse dia, foi um simples capricho do
acaso.
Quarenta e oito anos depois
convenço-me cada vez mais que é ele, o acaso, que comanda o processo, sempre o
comandou. Todo a evolução, em grande medida, foi determinado pelo acaso e as
nossas humildes vidas, claro, não lhe podiam fugir.
Pensei muitas vezes, ao longo de
todos estes anos, naquela jovem com um sentimento de culpa pela sua morte.
Propositadamente, não qui s vê-la
para não lhe recordar o rosto pela vida afora mas é fácil imaginá-lo e ele
tem-me acompanhado, sinal de que a minha consciência não está completamente
descansada.
Afinal, eu era o comandante daquela
Operação e antes dela começar deveria ter dado instruções a todos os soldados
para que, a menos que fôssemos atacados, ninguém daria tiros sem minha
autorização. Esta ordem ficou por dar e custou a vida àquela rapariga e a minha
consciência carregará sempre esse peso.
Para ela, flores…todas as flores
deste mundo!
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home