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Mar me quer
(Mia Couto)
Episódio Nº 19
E fui, pé ante-pé, até ficar por detrás de
Henriqui nha, até sentir o ofegar
dela. Aquele respirar me criava a ilusão de que ela se havia cansado comigo,
seu corpo aquecido em fogo do meu sangue. Precisava afastar, num súbito, aquela
vertigem.
Empurrei-a, não escutei nem grito nem
baque do tombo, vindos das rochas em baixo. Apenas a estridência de gaivota roçando o
barranco.
Henriqui nha
tombou? Foi engolida pelo mar?
Nos seguintes dias regressei à Duna
Vermelha, milimetrei grutas e areias à procura de um sinal do corpo de Henriqui nha. Nada. Só ausência. Para mim aqui lo doía mais que uma morte, dessas tratadas com
enterro e cerimónia. Se eu fosse homem de inteiro juízo, estaria ainda hoje
retorturado, despedindo-me infinitivamente de Henriqui nha.
Mas não. Para mim aqui lo
não se aconteceu. É como o futuro: existe mas não há. Se sucedeu foi para, no
mesmo instante, transitar para outra vida, outra memória que não me pertence.
Única coisa: Dona Luarmina é esse grito de
gaivota, no exacto despenho de Henriqui nha.
Me persegue essa aguda piação, me rasga as cicatrizes de uma ferida que nunca
senti. A senhora me pergunta porque motivo eu ando perseguindo essas aves?
Me entende, Dona Luarmina?
Todo aquele tempo, a vizinha escutara sem
se mover, rosto tombado em
sombra. Quando terminei ficou em silêncio até que Luarmina me
perguntou:
- Era esse o seu segredo?
- Era.
Então, ela levantou o rosto e me
enfrentou. Os olhos dela nem eram de raiva. Pareciam vazios, vagos. Como se
minhas palavras lhe tivessem trazido incurável cegueira.
- Vá lá atrás, no qui ntal, ver o que você fez.
- Desculpe, Dona Luarmina,
não posso ir.
Ela, então, se debateu com o seu próprio
corpo, em esforço de se levantar. As madeiras do assento reclamaram. Com Dona
Luarmina, todas as cadeiras eram de balanço. Sem ajuda, ela lá se ergueu e,
depois me estendeu a mão:
- Venha comigo.
Contrariado, segui-a. Sem alma fui atrás
do andar custoso dela até à gaiola. À minha frente, escudando-me da culpa, estavam
as costas de Luarmina. Seu volume encobria a visão do mundo.
- Veja.
Me mantinha por detrás dela, feito um
miúdo perante a chegada da sova. Ela insistia mas eu, cabisbaixo, capinava o
chão com a minha vergonha. Até que, súbito, escutei um remurejar de asa.
Aquele som chapinou a minha alma de
lembrança, como se fosse uma desabação dos mundos.
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