sexta-feira, fevereiro 24, 2017

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Mar me quer
(Mia Couto)





Episódio Nº 19


















E fui, pé ante-pé, até ficar por detrás de Henriquinha, até sentir o ofegar dela. Aquele respirar me criava a ilusão de que ela se havia cansado comigo, seu corpo aquecido em fogo do meu sangue. Precisava afastar, num súbito, aquela vertigem.

Empurrei-a, não escutei nem grito nem baque do tombo, vindos das rochas em baixo. Apenas a estridência de gaivota roçando o barranco.

Henriquinha tombou? Foi engolida pelo mar?

Nos seguintes dias regressei à Duna Vermelha, milimetrei grutas e areias à procura de um sinal do corpo de Henriquinha. Nada. Só ausência. Para mim aquilo doía mais que uma morte, dessas tratadas com enterro e cerimónia. Se eu fosse homem de inteiro juízo, estaria ainda hoje retorturado, despedindo-me infinitivamente de Henriquinha.

Mas não. Para mim aquilo não se aconteceu. É como o futuro: existe mas não há. Se sucedeu foi para, no mesmo instante, transitar para outra vida, outra memória que não me pertence.

Única coisa: Dona Luarmina é esse grito de gaivota, no exacto despenho de Henriquinha. Me persegue essa aguda piação, me rasga as cicatrizes de uma ferida que nunca senti. A senhora me pergunta porque motivo eu ando perseguindo essas aves?

Me entende, Dona Luarmina?



Todo aquele tempo, a vizinha escutara sem se mover, rosto tombado em sombra. Quando terminei ficou em silêncio até que Luarmina me perguntou:

- Era esse o seu segredo?

- Era.

Então, ela levantou o rosto e me enfrentou. Os olhos dela nem eram de raiva. Pareciam vazios, vagos. Como se minhas palavras lhe tivessem trazido incurável cegueira.

- Vá lá atrás, no quintal, ver o que você fez.

- Desculpe, Dona Luarmina, não posso ir.

Ela, então, se debateu com o seu próprio corpo, em esforço de se levantar. As madeiras do assento reclamaram. Com Dona Luarmina, todas as cadeiras eram de balanço. Sem ajuda, ela lá se ergueu e, depois me estendeu a mão:

- Venha comigo.

Contrariado, segui-a. Sem alma fui atrás do andar custoso dela até à gaiola. À minha frente, escudando-me da culpa, estavam as costas de Luarmina. Seu volume encobria a visão do mundo.

- Veja.

Me mantinha por detrás dela, feito um miúdo perante a chegada da sova. Ela insistia mas eu, cabisbaixo, capinava o chão com a minha vergonha. Até que, súbito, escutei um remurejar de asa.

Aquele som chapinou a minha alma de lembrança, como se fosse uma desabação dos mundos.

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