sábado, fevereiro 04, 2017

Mar me quer
Mia Couto
(Episódio Nº 8)







Enquanto falava já minha mão viajava naquelas gorduras vivas dela, combozinho doido ondulando pelas topografias do seu assento. Eu andava de bicos de mãos pelas reentrâncias dela.
- Que é isto, o senhor ainda não foi autorizado.
- Essa minha mão, Dona Luarmina, pertence ao sector informal.
- Você, Zeca perpétuo é que é todo do sector informal.
- A senhora conhece o ditado, não conhece? Mais vale uma mão no pássaro...
- Você é um abusador...
- Isto são sonhos, só sonhos. Sabe o que sonhei ontem Dona Luarmina? Pois lhe conto, não me corte as falas.
- A senhora ia comigo ali ao Baixo da Nuvem e dançava comigo. Dançava de branco toda respeitosa. Eu fechava os olhos e, de repente, você me dizia, baixinho ao ouvido:
- Veja: estou como o peixe.
“Eu me arrepiava. Nem tinha coragem de abrir os olhos. Sua voz zunzunava junto à minha orelha:
- Mas, veja bem: tenho tatuagem aqui na barriga. Veja com sua mão. Sim, aí. Mais em baixo, também, na roda da anca, passe o dedo lá, sim. Isso mesmo, aí. São tatuagens para você não escorregar.
Tudo aquilo era bonito e fresco de inventar. Mas não pude continuar a lembrança do sonho. Dona Luarmina me interrompeu e me sacudiu com sua mão papuda.
- Cale-se,  Zeca. Você já é velhotezito. Porque sonha ainda essas coisas?
- Sou velho, o caraças. A senhora que gosta tanto de aves me responda: penas de pássaros se gastam
- Mas o senhor, agora, só voa rente ao chão.
- Aí é que está, Dona Luarmina: nos embaixos é que está a graça.
Luarmina não estava para as graças. De vez enquanto ela dispensava um sorriso. No resto, ela fechava uma tristeza de não ter tido filho. Quando eu lhe apelidava de flor ela, azeda, voltava à descarga:
- Não me chame de flor que me dói. A semente é a única pegada da flor. E eu não deixei filho neste mundo.
- Culpa não foi sua. Nenhum insecto certo lhe soube pousar. Fosse era eu.
- Caluda, Zeca.
- Escute o que eu falo: você, sim, é flor.
- Está, sou flor. Mas uma dessas que nunca serviu.
- Você serviu belezas, Luarmina.
_ E para que servem as belezas? Para nada.
- Veja, exemplo, só: quem lustra mais o céu? Não é o arco-iris? E pois me diga: qual o serviço que tem o arco-iris?
- Nem sei lá.
- Tem o serviço só de fantasiar, de ensinar o céu a sonhar.
Mas ela voltava ao semimesmo. Eu que a desculpasse. Porque ela se tinha definitiva, como a ruína. E falava:
- Perdi o tempo, mas o tempo, esse, é que não se esquece de mim.
Assim dizia, apontando as peles envelhecidas do pescoço. E eu, no conforto: pois o tempo não lhe larga o pé. Graças e desgraças a Deus. Porque sou eu e é o tempo, os dois lhe competindo, Dona Luarmina. Deixe que seja eu a ganhar. Por amor de Deus, Dona...
- Quer mesmo me apaladar?
- Se quero, Dona!
- Então me desfie, uma memória sua, uma verdadeira...

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