Mia
Couto
(Episódio Nº 8)
Enquanto falava já minha mão viajava naquelas gorduras vivas dela, combozinho doido ondulando pelas topografias do seu assento. Eu andava de bicos de mãos pelas reentrâncias dela.
- Que é isto, o senhor ainda não foi
autorizado.
- Essa minha mão, Dona Luarmina, pertence ao
sector informal.
-
Você, Zeca perpétuo é que é todo do sector informal.
- A senhora conhece o ditado, não conhece? Mais
vale uma mão no pássaro...
- Você é um abusador...
- Isto são sonhos, só sonhos. Sabe o que
sonhei ontem Dona Luarmina? Pois lhe conto, não me corte as falas.
- A senhora ia comigo ali ao Baixo da Nuvem
e dançava comigo. Dançava de branco toda respeitosa. Eu fechava os olhos e, de
repente, você me dizia, baixinho ao ouvido:
- Veja: estou como o peixe.
“Eu me arrepiava. Nem tinha coragem de abrir
os olhos. Sua voz zunzunava junto à minha orelha:
- Mas, veja bem: tenho tatuagem aqui na barriga. Veja com sua mão. Sim, aí. Mais em
baixo, também, na roda da anca, passe o dedo lá, sim. Isso mesmo, aí. São
tatuagens para você não escorregar.
Tudo
aqui lo era bonito e fresco de
inventar. Mas não pude continuar a lembrança do sonho. Dona Luarmina me
interrompeu e me sacudiu com sua mão papuda.
- Cale-se, Zeca. Você já é velhotezito. Porque sonha
ainda essas coisas?
- Sou velho, o caraças. A senhora que gosta
tanto de aves me responda: penas de pássaros se gastam
- Mas o senhor, agora, só voa rente ao chão.
- Aí é que está, Dona Luarmina: nos embaixos
é que está a graça.
Luarmina
não estava para as graças. De vez enquanto ela dispensava um sorriso. No resto,
ela fechava uma tristeza de não ter tido filho. Quando eu lhe apelidava de flor
ela, azeda, voltava à descarga:
- Não me chame de flor que me dói. A semente
é a única pegada da flor. E eu não deixei filho neste mundo.
- Culpa não foi sua. Nenhum insecto certo
lhe soube pousar. Fosse era eu.
- Caluda, Zeca.
- Escute o que eu falo: você, sim, é flor.
- Está, sou flor. Mas uma dessas que nunca
serviu.
- Você serviu belezas, Luarmina.
_ E para que servem as belezas? Para nada.
- Veja, exemplo, só: quem lustra mais o céu?
Não é o arco-iris? E pois me diga: qual o serviço que tem o arco-iris?
- Nem sei lá.
- Tem o serviço só de fantasiar, de ensinar
o céu a sonhar.
Mas
ela voltava ao semimesmo. Eu que a desculpasse. Porque ela se tinha definitiva,
como a ruína. E falava:
- Perdi o tempo, mas o tempo, esse, é que não
se esquece de mim.
Assim
dizia, apontando as peles envelhecidas do pescoço. E eu, no conforto: pois o
tempo não lhe larga o pé. Graças e desgraças a Deus. Porque sou eu e é o tempo,
os dois lhe competindo, Dona Luarmina. Deixe que seja eu a ganhar. Por amor de
Deus, Dona...
-
Quer mesmo me apaladar?
- Se
quero, Dona!
-
Então me desfie, uma memória sua, uma verdadeira...
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